1.
Chegamos à edição 50 e, perdão aos leitores, mas será preciso começar dessa vez por um momento institucional, embora eu também queira falar sobre meu boné do David Lynch, uma coisa estranha que comprei no eBay e uma cena do filme A verdadeira dor. Chegamos à edição 50 e eu, em uma reação óbvia, fui ler a número um: era outubro de 2022 e eu apresentava o lugar onde moro com ênfase na minha solidão, argumentando que era esquisito viver um cotidiano tão distante daquele dos meus amigos do Brasil – a cisão normal, acho eu, de toda pessoa expratriada (eu não sabia disso na época, mas também sentiria a dor do caminho contrário: o 8 de janeiro, as descomunais enchentes no meu estado, a alegria inédita de ver o Brasil levar um Oscar, tudo isso acontecendo do outro lado do mundo e dentro de mim sem que as pessoas à minha volta fizessem a menor ideia).
Mas a questão principal era que essa edição falava do medo de eu não conseguir mais me comunicar com meu público leitor. Sobre o que eu escreveria? Como fazer sentido, como tocar as pessoas, sendo eu essa escritora com gostos tão peculiares e que mora em um lugar tão distante?
2.
E esse Pacífico! E esse cervo! O que faço com eles?, eu dizia a certa altura da primeira edição.
Pois o que acabei fazendo foi essa newsletter chamada Nevoeiro. E deu certo. Na literatura minhas vendas são razoáveis, construí um certo nome em dezessete anos de carreira, ganhei um prêmio importante, mas nunca fui bestseller. E aí calhou que virei bestseller no Substack. Coisa louca. São quase 13.000 assinantes, e 450 assinantes pagos. E isso aconteceu comigo escrevendo sobre ursos, árvores, banhos em rios gelados, minha mãe, livros, brinquedos no eBay, budismo amador, a velocidade do mundo, desconforto, instagram, tênis, sexo, discos, nostalgia. Ainda me sinto grata demais. De quebra, ainda conheci e conheço todos os meses tanta gente legal nos encontros do clube. Vocês com certeza deixam minha vida muito melhor.
3.
Mas desde que comecei a Nevoeiro, não escrevi nenhum livro. Quando me preocupo demais com isso, a primeira dúvida que aparece é se não estou trabalhando meus tormentos internos nessa newsletter quinzenal em vez de guardá-los para uma possível narrativa longa. Ou se é só uma questão mesmo – e bem considerável – de tempo consumido.
4.
Na página 20 de O Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell:
Quanto a mim, não sou feliz nem infeliz; me encontro suspenso como um cabelo ou uma pena nas misturas turvas da memória. Já falei da inutilidade da arte, mas não acrescentei nada de verdadeiro sobre suas consolações. O conforto de um trabalho que faço com o cérebro e o coração está nisto – que somente ali, nos silêncios do pintor ou do escritor, a realidade pode ser ordenada, retrabalhada e construída para mostrar seu lado mais significativo.
5.
Ontem recebi um envelope da Itália com uma coisa que comprei no eBay. Veio dentro de um folheto publicitário de um evento que aconteceu em janeiro. Abri o folheto sentada em um banco na frente da única agência de correios de Mendocino, um pouco atordoada. Lá estava o postal do Cabo de Buena Esperanza, um navio construído em 1920 nos estaleiros de Nova York e transferido para a Europa antes da Segunda Guerra, quando então passou a fazer viagens transatlânticas da Espanha até a América do Sul. O navio foi desmantelado em 1958 no porto de Barcelona, mas no apagar das luzes daquela gigante de 12.594 toneladas, levou os Bensimon de muda para o Brasil – um outro barco chamado Lydia tinha feito a travessia de Alexandria, Egito, até Barcelona.
6.
E agora eu sou a neta no norte da Califórnia usando um boné do David Lynch.
7.
Achei bonito demais A verdadeira dor, e é difícil escolher a cena que mais demonstra emoções sem afetação porque o filme inteiro na verdade constrói esse fluxo melancólico sem gritaria e sem apoteose, tão parecido com a vida real que é como se a gente estivesse realmente viajando pela Polônia com aqueles dois primos e aquele grupo (Hi We’re Diane and Mark Binder. We’re boring.). Mas o momento que mais me marcou por motivos de talvez-eu-protagonize-essa-cena-em-outubro foi quando David e Benji se veem diante do endereço onde a avó morou. E não há nada lá (mas o que poderia haver?). Um prédio antigo como tantos outros. A cena climática é no fim das contas totalmente anti-climática. De uma banalidade de dar dó. Os primos pensam em uma homenagem, mas tudo se desenrola de um jeito desconfortável e desajeitado, com a situação ficando ainda pior no momento em que os moradores atuais se intrometem no gesto. Precisam ir embora com aquele gosto insosso na boca. Talvez os lugares reais não estejam à altura dos lugares que recriamos dentro de nós.
Se você gosta do meu trabalho, considere se tornar um assinante pago. Colaboradores têm acesso a um encontro mensal no Zoom, e nossa programação está ficando linda demais. Assinantes pagos também recebem as edições exclusivas do Caderno Amarelo, que fala sobre processo criativo.
No dia 19 de março, às 19h, vamos receber o professor, tradutor, escritor e ser humano maravilhoso Caetano Galindo. O título desse encontro é Escrever em português brasileiro, e já estou desde já pensando em umas questões que muito me afligem (e que batem com mais força quando estou dando aula de escrita criativa).
Em 23 de abril, nosso encontro rola em formato clube de leitura. Discutiremos Um guia para se perder, da Rebecca Solnit, esse livro que é uma pequena joia e o representante 2025 de não-ficção do clube.
As imagens que ilustram essa edição foram tiradas do meu caderno de planejamento da Nevoeiro. Uma coisa que posso provar: os textos da newsletter saem mais redondos e exigem menos bateção de cabeça quando previamente estruturados. Aliás, aqui link para as edições citadas: #6, #44, #49.
o que não é o nevoeiro senao um grande livro que lemos em capitulos?
Sempre dá aquela alegria quando chega a nevoeiro no e-mail. :)