1.
Todos os anos, Mitchell e Sharon ficam felizes quando as chuvas de inverno enchem o açude. Eu lembro da primeira vez que vi o açude aumentando de volume: a água corria por baixo da pontezinha de madeira e ia parar naquele corpo d’água escondido atrás dos arbustos e da sequoia-vermelha. Mitchell e Sharon são os donos da propriedade onde eu moro. Só um bambuzal separa nossas casas. Duas semanas atrás, eu estava numa rotina esquisita de acordar às cinco. Fui até a cozinha preparar o café de manhã, tudo lá fora escuro como se fosse meia-noite, e então ouvi uma voz. Esse lugar é tão silencioso que comecei a achar que tenho tinnitus (a sensação de ouvir som quando não há nenhum som externo; no meu caso, uma espécie de modem 14.400 US robotics). Abri a porta e vi o Mitchell de roupão, lanterna e telefone sem fio no ouvido. “A Sharon sumiu”, me disse, e voltou a responder perguntas protocolares. Estava falando com 0 911.
2.
Coloquei a lanterna de cabeça, as botas e o casaco. Disse ao Mitchell que ia atrás da Sharon. Manobrei o carro, tudo no breu. Cheguei na nossa rua, só escuridão, não há iluminação pública aqui. As primeiras luzes que vi foram as da escola, revelando o pátio desproporcional e deserto.
Há um ano e meio, Sharon foi diagnosticada com uma demência chamada Corpos de Lewy. Seus primeiros sintomas foram as alucinações vívidas, que ainda permanecem e são acompanhadas agora por um declínio cognitivo rápido. Sharon já saiu caminhando de madrugada uma outra vez, uma reação às alucinações que envolvem pessoas a agredindo e agredindo o marido. Não é incomum na região que idosos com demência se percam na floresta. Idosos com demência e coletores de cogumelos.
Fui descendo a Little Lake Road devagar e olhando para os lados. Cheguei no corpo de bombeiros e vi uma mulher segurando um café abrir a porta do prédio enquanto eu parava o carro. “Bom dia, tô procurando minha vizinha, ela…”. “Ela tá aqui.” Apontou para dentro, Sharon sorriu para mim.
Ela sempre sorri e dá umas gargalhadas. Às vezes parece a mesma Sharon que eu conheci em 2015. Disse à bombeira que tinha sido chicoteada, mas a mulher já a conhecia do outro episódio, e ficou com meu telefone pro caso de Sharon aparecer uma próxima vez. Uma viatura da polícia chegou. Sharon entrou no meu carro e, ao sentar, recolheu um papel que estava sobre o tapete emborrachado e colocou-o em cima do painel. Era um envelope sem importância, que eu ia descartar quando tomasse vergonha na cara e limpasse o carro. Aquele gesto – um traço banal de lucidez – despedaçou meu coração.
3.
Eu e Sharon sempre trocamos muitos e-mails.
Um dos últimos que ela mandou, no meio da pandemia, dois anos atrás, foi esse:
Oi, Carol.
Espero que esteja tudo bem. Bastante tempo para escrever!
Nós estamos adorando a chuva dos últimos dias. O açude está enchendo, e o poço também.
Já que não podemos nos encontrar neste momento, pensei em te contar sobre o que ando lendo. Encontrei um livro na estante chamado "O peso insuportável da filosofia tornada mais leve". Tem imagens, o que eu gostei. Bom, isso me levou a outros livros de filosofia. E então Marta nos deu de Natal um livro de chamado "Até o Fim do tempo", um livro famoso de física que quase provoca ansiedade, exceto pelo fato de que as coisas acontecem ao longo de bilhões de anos.
Então... o sol vai queimar todo o hidrogênio, um planeta perdido pode nos atingir, ou um asteroide. Enfim!
Espero que esteja tudo bem com você. Nos vemos depois que tudo isso acabar!
4.
Conheci Sharon e Mitchell pelo Airbnb, acredite. Era o outono de 2015 no hemisfério norte e eu estava passando uma temporada em Mendocino, tateando a ideia do que viria a ser meu próximo romance, O Clube dos Jardineiros de Fumaça. Escrevi pouco daquela primeira vez. Exatamente um ano depois, voltei para Mendocino, o que também passou a ser voltar para a casa que Sharon e Mitchell alugavam. Todas essas ideias – Mendocino, Sharon, Mitchell, essa cabana – ficaram muito misturadas no meu imaginário afetivo.
Em 2016, nos tornamos mais próximos. Eles me apresentaram os amigos, um monte de gente que, direta ou indiretamente, foi essencial para meu romance: o cara que tinha “vencido na vida” e comprado uma antiga comunidade hippie; o cara que tinha vivido na antiga comunidade hippie, não tinha de jeito nenhum vencido na vida e agora recitava poemas do William Carlos Williams; a senhorinha que plantava maconha, há décadas sobrevivendo disso, tendo criado um filho sozinha; o senhor que comeu um sorvete no restaurante do Hotel Mendocino feito um desesperado enquanto me contava do tempo em que plantou maconha nas terras de uma mega corporação da celulose; o artista obsessivo acumulador, Larry Fuente, que colou em um Cadillac milhares de pedrinhas e bugigangas da sociedade de consumo.
5.
Demorei um pouco para me dar conta que a maioria daquelas pessoas na verdade não era tão próxima dos dois. Algumas eles não viam há anos, talvez décadas. Ao que parecia, Mitchell e Sharon tinham promovido aqueles encontros para me ajudar a escrever meu livro.
Também demorei um pouco para me dar conta que seu círculo de amigos era pequeno. Eu e a Melissa agora fazíamos parte do círculo, e isso se tornou ainda mais óbvio depois que nos mudamos definitivamente pra cá, em agosto de 2018. Às vezes tento entender o que nos aproximou tanto, consciente de que sempre há algo da ordem do inexplicável nesses encontros. Mitchell é alguém que escreve muito. Mas escreve para si mesmo, não tem nenhuma intenção de publicar o que produz. Será que somos dois lados de uma mesma coisa, de um mesmo impulso, mas apartados por duas gerações?
6.
Raramente bato na casa do Mitchell e da Sharon sem avisar. Mas nessa tarde bati. Fazia já uns três ou quatro dias desde o episódio em que Sharon andou no meio da madrugada até o corpo de bombeiros, e as discussões sobre o que fazer frente ao avanço da doença pipocavam entre Mitchell, amigos e amigas, assistentes sociais e a sobrinha de Mitchell (eles não têm filhos). Aqui vale um parênteses: os americanos costumam ser bem pragmáticos com essas situações, e institucionalizar alguém que já não está em condições de cuidar de si mesma é uma solução comum. Há versões luxuosas de casas de repouso, e a própria irmã de Mitchell está em uma dessas em alguma cidade do estado de Washington, se distraindo como barista no café do local algumas vezes por semana. De minha parte, sigo com minha mentalidade brasileira e entendo perfeitamente a relutância de Mitchell em tomar essa decisão. Ao mesmo tempo, sinto que algo precisa ser feito para evitar situações de risco.
Feito o parênteses, volto ao momento em que bato na porta, Sharon abre e eu entro. Marta – a mesma que deu a ela o livro sobre o fim do universo – está lá. Sento na mesa com os três. Sobre ela, estão dispostos alguns cartões de Natal – não entendo muito bem o motivo – e um alarme com sensor de movimento ainda na embalagem; é a ideia de Marta para evitar uma nova fuga.
Fico ali um tempo, logo mais vou ter que ir até a cidade fazer compras, Melissa chega do Brasil em dois dias. Estranhamente, sou tomada por uma sensação boa, consigo sentir de novo a leveza que sempre vi neles. Mitchell está rindo e têm umas ideias grandiosas sobre organizar leituras de poesia em casas de repouso (esse país tem que mudar, diz). Alguém poderia argumentar que ele está em negação, mas e daí? Se você chega aos 87 anos, tem uma esposa com demência, mas consegue ainda rir sentado na sua casa na companhia de amigas, isso não é a maior vitória que a vida pode oferecer? O que exatamente quer dizer em negação? Sharon também se diverte. Não é a mesma Sharon, mas é a Sharon que pode existir agora. Saio de lá, dirijo até a cidade, compro pilhas para o alarme.
Como pode que esta edição da newsletter tenha sido melhor do que metade dos livros que eu li nesse ano? Sinto que Sharon e Mitchell também vão existir em alguma história sua.
Carol, teu relato traz tanto uma candura na forma que tu descreve a Sharon e o Mitchell como também uma malha narrativa dinâmica que funciona por conta própria. Fiquei tocado com a situação e acho que essa narradora também faz uma pergunta sobre do que se trata o envelhecer (fora do país de origem), afinal de contas.
Ponto extra para a gente que leu Clube dos Jardineiros e sente que o relato da festa é quase um spin-off daquela atmosfera.