Essa edição levou uma manhã inteira para ser escrita, e antes disso uma caminhada, um esqueleto de estrutura, a leitura de uma matéria. Se você gosta do meu trabalho, considere se tornar um assinante. Colaboradores têm acesso a um encontro mensal no Zoom. Assinantes pagos também recebem as edições exclusivas do Caderno Amarelo, que fala sobre processo criativo.
1.
O que não contei para vocês na última edição foi que trouxe de Porto Alegre a Mendocino uma mala cheia de brinquedos. Literalmente. Uma bagagem extra cujo transporte eu paguei uma nota, e dentro da mala havia apenas brinquedos dos anos oitenta. Era um texto emotivo, aquele outro, então você precisa fazer uma seleção delicada do que vai dizer, porque a cena que me revela acondicionando uma gigantesca caixa que contém um castelo dos Muppet Babies – um dos meus desenhos favoritos da infância – é meio risível. Igualmente patético sou eu conferindo uma a uma as arminhas e mochilinhas de uns tais Food Fighters, uns bonecos horrorosos comprados em uma viagem com meus pais para os Estados Unidos, que recentemente descobri que valem alguma coisa no ebay. Ainda pior na escala dos momentos embaraçosos: eu na frente do computador cogitando comprar um fuzil vermelho de não mais de dois centímetros para assim poder vender mais caro meu boneco do Lieutenant Legg (uma coxa de galinha braba) ou do Private Pizza (uma fatia de pizza pronta pro combate, com uma rodela de calabresa como tapa-olho).
Virei uma vendedora de ebay. Me deram o nome de bens4616. bens4616, obviamente, tinha zero vendas e zero avaliações. Um mundo estranho começou a fazer parte dos meus dias.
2.
Também faz parte dos meus dias ir no mercado local, o Harvest. Mendocino tem dois mercados: o Harvest e o Corners of the Mouth, esse último uma cooperativa de comida orgânica que funciona dentro de uma velha igreja de madeira com um vitral arco-íris. Costumo ir no Harvest. Já (re)conheço todo mundo que trabalha lá, embora eu não seja o tipo que interaja tanto, e a coisa que mais chama a atenção é que os funcionários, se seria temeroso dizer “são todos felizes”, estão ali presentes com uma certa plenitude e uma atenção incomum, em contraste com a pulsão de morte que sempre sinto ao ver uma atendente do Zaffari por exemplo, alguém que teve a vida completamente sugada do corpo pela escala 10x1.
No Harvest, parece que todo mundo é um pouco Hirayama, o protagonista de Dias Perfeitos, em variados graus. Há uma mulher que ultimamente virou minha personagem favorita do mercado que é a mais Hirayama de todas (versão falante) e que, outro dia, numa tarde ensolarada, fez a outra funcionária reparar na forma como a luz do sol batia nas orquídeas à venda, uma cena tão bonita que parecia escrita pelo Wim Wenders mas não, estava realmente acontecendo bem na minha frente.
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Nos últimos tempos, sempre interajo um pouco com a minha Hirayama. As últimas: 1. Um dia está um puta frio e ela, só de camiseta. Comento o fato e ela me diz que o frio é uma questão de respiração; se você consegue controlar a respiração, não sente frio, não contrai o corpo, tudo fica bem (penso: só na Califórnia eu poderia ouvir uma coisa dessas). 2. Ela e outros dois funcionários estão se palhaçando quando eu passo no caixa. É noite. Ela pega o comunicador que vai direto para o sistema de som da loja e diz “Feliz Aniversário, Greg”. Todos os três caem na risada porque não é aniversário do tal Greg. Ela vira para mim e fala, ainda rindo: “não acredito que pagam a gente para fazer isso”. 3. Passo no caixa com duas dúzias de fire starters, essa coisinha que te ajuda a fazer fogo na lareira. Digo a ela “eu sei, eu sei, eu não deveria precisar de fire starters”, e ela me responde: “Você não deveria ser tão exigente consigo mesma.”
4.
Minha primeira venda no ebay foi para um certo glitterboy666. Depois veio o morbidobesity.
5.
Após ter feito mais de dez vendas, me pego no flagra em um troço esquisito: estou olhando no Google Street View todos os endereços para onde enviei pacotes. Uma casa em um subúrbio árido no Novo México. Uma construção colonial de tijolos em Ohio. Um endereço perto de uma rodovia no Massachusetts. Alguém que tem um mercadinho em um trailer park da Pensilvânia comprou meu Lego Fabuland do parque de diversões (na janela do mercado, um cartaz verde escrito à mão: ISCAS VIVAS). Não sei muito bem o que eu sinto nem por que estou fazendo isso. Talvez eu não tenho suportado o anonimato do ebay, os usernames gerados com números, a falta de um rosto.
6.
Isso – a rotina das vendas no ebay, as despedidas graduais, umas com emoção, outras sem – está à pleno vapor no dia em que minha amiga Anya vem aqui em casa. Depois de abusarmos na comida, ficamos ouvindo discos e vendo o fogo trepidar. Ela pega a edição mais recente da Atlantic e folheia. Eu digo que a matéria de capa – O Século Anti-Social – é muito boa, e ela começa a ler, soltando uns “isso é tãaao deprimente” a cada dois minutos. A matéria é de fato muito boa e muito deprimente, mas eu vou para um outro plano, talvez o plano da memória e da negação, porque estou achando bonito esse momento, que me remete às tardes preguiçosas com as amigas folheando edições da Capricho. Anya quer fazer um grupo de bordado (mulheres bordando juntas no café da cidade). Ela é esse tipo de pessoa.
7.
A matéria da Atlantic pode ser resumida assim: as pessoas passam cada vez mais tempo em casa e cada vez menos tempo na companhia de outros. Mais delivery e menos restaurante. Mais Netflix e menos cinema. Mais sala de estar e menos praça. Mais rede social e menos interações cara a cara. É pior entre os homens, que aderem mais ao que a socióloga Liana C. Sayer chama de “lazer sedentário” (videogame, esportes na tevê) que entre as mulheres, que são mais numerosas no “lazer ativo” (socializar, ir a shows, fazer esportes). Mas o retrato é desesperador de qualquer ângulo, qualquer gênero, qualquer idade.
8.
“Todo esse tempo sozinho, em casa, no celular, não nos afeta somente enquanto indivíduos”, escreve Derek Thompson. “Isso está fazendo também a sociedade ficar mais fraca, mais cruel, mais delirante”.
9.
E aí vem a teoria de Marc J. Dunkelman, pesquisador na Brown University. Podemos dizer que a cultura do celular solidifica as conexões do nosso círculos mais íntimo; troco dezenas de mensagens com meu pai todos os dias, apesar de estarmos a mais de dez mil quilômetros um do outro. O celular também solidifica conexões distantes (nós aqui, amantes da literatura, por exemplo, trocando dicas de livros). Mas a cultura digital está matando o círculo do meio, que Dunkelman chama de “o vilarejo”. E o círculo do meio, ele explica, é fundamental para a coesão social. “A família nos ensina o amor, e as tribos, a lealdade. O vilarejo nos ensina a tolerância”.
Então Dunkelman pede para nos imaginarmos em uma reunião de pais. O pai de um colega do seu filho discorda de você. No mundo online, você vai descartá-lo como um oponente político que merece seu desprezo. Mas de repente, ao encontrá-lo numa academia cheia de vizinhos, morderia a língua. O ano vai passando, você descobre que suas filhas estão na mesma aula de dança. Um dia, na hora de buscá-la, você e o outro pai trocam histórias sobre cuidar de seus pais idosos.
“Embora as diferenças não desapareçam”, diz Dunkelman, “elas se tornam apenas um fragmento em uma coexistência pacífica”.
A matéria que citei, “The Anti-Social Century”, está aqui.
No dia 18 de fevereiro, rola nosso encontro do clube. Vamos falar sobre A única história, de Julian Barnes. E em 19/3, teremos um bate-papo com o grande Caetano Galindo. Confira a programação quase completa.
A Todavia está lançando em abril A trama das árvores, do Richard Powers, traduzido por essa que voz fala. Vamos ler no clube em outubro porque é um petardo capaz de mudar nossa relação com as árvores (e traz uma história eletrizante, além de tudo. Ansiosa desde já).
Eu vivi na prática o exemplo dado pelo Dunkelman. Moro em Bali e a escola dos meus filhos reúne uma comunidade de expatriados endinheirados que me dá arrepios. Um deles, um britânico - o mundo se transforma, mas a vocação predadora dos bucaneiros ingleses só se recicla -, aparentava enxergar apenas novas maneiras de ficar ainda mais rico. Baseando-me pelas manifestações de WhatsApp, rotulei logo: Neocolonizador. Até que meu filho foi se interessar logo por quem? A filha do cara. E aí começamos um lento processo de aproximação. Acabei descobrindo que o cara é pianista na vida privada e praticamente estruturou o currículo de música na escola, por acreditar que ninguém pode ser formado sem contato com arte. A esposa é artista plástica. Ele também incentivou a escola a investir mais nos esportes, preocupado com o excesso de sedentarismo das crianças na frente das telas. Enfim, ninguém é só uma coisa, né? Mas a convivência exclusivamente digital dificulta essa visão do todo.
Isso me lembra muito um poema da Szymborska que eu amo
"agradecimento"
Devo imenso
aos que não amo.
O alívio com que aceito
eles estarem mais próximos de outras pessoas.
A alegria de não ser eu
o lobo dos seus cordeiros.
A minha paz com eles,
com eles a minha liberdade,
e isto não o pode dar o amor
nem o consegue tirar.
Não espero por eles
entre porta e janela.
Quase tão calma
como um relógio de sol,
entendo
o que o amor não entende,
desculpo
o que o amor jamais desculparia.
Entre carta e encontro
não passa a eternidade,
mas simplesmente uns dias ou semanas.
As viagens com eles são conseguidas,
os concertos escutados,
as catedrais visitadas,
as paisagens nítidas.
E quando nos separam
sete rios e montanhas,
são rios e montanhas
bem conhecidos dos mapas.
É mérito deles
que eu viva em três dimensões,
num espaço não lírico e não retórico
com um horizonte real porque movente.
Eles próprios ignoram
quanto trazem nas mãos vazias.
«Nada lhes devo» -
diria o amor
a este tema aberto.
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
https://canaldepoesia.blogspot.com/2017/12/wislawa-szymborska-agradecimento.html#google_vignette