Nevoeiro #44
A alegria da transformação; um novo exercício inusitado; o show na sala de um milionário.
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1.
Oito da manhã e eu sento no meu zafu e dou play em uma meditação guiada. Só entendo no meio do caminho que aquela sessão de dez minutos é o fechamento de um curso chamado “hábitos saudáveis”, mas tudo bem; a voz paciente de Alexis Santos está dizendo que formar novos hábitos exige tempo, e eu mentalizo os músculos do meu ombro esquerdo, enrolados e embebidos em ácido lático, possivelmente culpa das sucessivas vezes em que ergui uma kettlebell de doze quilos acima da minha cabeça. Mas logo me desvio das imagens de exercícios físicos e começo a pensar na minha nova relação com o celular, porque essa é a minha jornada atual, porque esse é meu processo de reabilitação: Oi meu nome é Carol Bensimon faz duas semanas que parei de usar o Instagram compulsivamente.
Alexis Santos fica em silêncio por um logo tempo, depois sua voz ressurge e diz “Há uma alegria no próprio processo de mudança”. É isso, Alexis. Uma espécie de meta satisfação. A alegria ao percebermos que somos capazes de mudar.
2.
Temos dois novos amigos, um casal, que moram em uma cabana no meio da Floresta Pigmeu. Essa é uma parte do ecossistema local que, por questões geológicas que não tenho a mínima condição de explicar, é composto somente por arbustos e árvores anãs centenárias, lutando para sobreviver em um solo avesso à vida. Estacionamos no meio dessa confusão retorcida e seguimos por um caminho que lembra um labirinto verde. E lá está a cabana, brilhando luz amarela. E lá está John no meio da floresta pigmeu dançando com uma corda grossa de marinheiro.
John tem 69 anos. É um cara forte que anda com o gingado da juventude, e o melhor contador de histórias que eu já vi. Uma hora conto para vocês sobre o Ed, da loja de armas, com a certeza de que não vai ter a mínima graça sem a modulação do John. Mas então. John e a corda, ali no entardecer. São movimentos rápidos, trocando a corda de mão, desenhando um símbolo invisível do infinito, tudo tão suave e tão conectado que eu fico de boca aberta. Ele me conta que quem inventou aquele exercício chamado rope flow foi um certo David Weck, o mesmo cara que criou a bosu, aquela meia bola que você já deve ter visto em academias.
John fala com uma empolgação leonina enquanto seu corpo inteiro segue o ritmo da corda, perfeitamente integrado. Ele não tem celular. Mas você pode achar que isso é só um detalhe como qualquer outro.
3.
Cynthia, a esposa do John, nos manda uma mensagem: John foi até o porto e fez umas cordas pra mim e pra Melissa.
4.
E aí três dias depois estou dirigindo para o Vale do Silício não porque amo essa região ou porque tenho amigos lá ou porque meu plano é descobrir onde mora o filho da puta que inventou o scroll infinito; estou dirigindo para a ultra milionária cidade de Menlo Park porque comprei um ingresso de 25 dólares para assistir a uma banda que gosto muito – mas que pelo jeito não muita gente gosta – chamada Califone. O show vai acontecer na sala de estar de uma pessoa aleatória. E a coisa fica mais esquisita ainda. Essa pessoa aleatória, cujo nome e endereço recebi assim que meus dados de pagamento foram processados, fundou nos anos noventa uma companhia de video-game chamada EA Sports. Você talvez lembre disso. Os primeiros Fifa Soccer. Mas o que tem lugar de destaque no meu coraçãozinho pop de millennial é um jogo chamado Lakers x Celtics. 1991, Mega Drive. Meu Deus, como eu amava esse jogo.
5.
No caminho, paro em uma loja de discos que se chamava The Last Store e que acaba de mudar seu nome para The Next Store. Acho que eu gostava mais da versão pessimista, resistente, corajosa. Um dos álbuns que compro é do The Mamas & the Papas. Fico um pouco emotiva no carro depois, sem ouvir as canções, mas apenas por saber que aquele álbum está no banco de trás. Foi minha mãe quem me fez gostar do som de uma certa Califórnia, carregado com uma nostalgia solar reconfortante. Aos quarenta e poucos anos, ela virou uma anti-americana estridente, mas, ei, eu sei o que tu tava fazendo nos anos setenta, eu sei o que tocava na tua vitrola e quem tu queria ser, mãe. Eu te vejo feliz em uma foto azulada dentro de um bonde em San Francisco.
6.
O show é bonito. Antes de começar, ouço a anfitriã e uma outra mulher falarem em Sega, e demoro a entender, porque essa é a primeira vez que escuto aquela palavra pronunciada em inglês. A van da banda quebrou na noite anterior, no sul da Califórnia, e eles parecem cansados. Assisto ao show a menos de três metros dos caras, sentada em um sofá. Não somos mais do que trinta pessoas. É estranho simplesmente ter entrado nessa mansão, o portão aberto, a porta aberta, ninguém para conferir se meu nome estava na lista, a área enorme da piscina, a anfitriã oferecendo morangos orgânicos, o anfitrião de bermuda e tênis, tudo o que se imagina de um bilionário californiano.
Sinto um certo desconforto porque dá para ver que Tim Rutili, a voz, a alma e a mente da banda, é um homem desapontado com o mundo. Uma de suas músicas mais bonitas, que ele canta com aquela sua voz distante, meio à la Jeff Tweedy, diz “todos os meus amigos pararam de tentar / todos os meus amigos são cantores de funeral / cantores de funeral / cantores de funeral se lamentando”.
7.
Há vinte anos, no que parece outra vida em todos os sentidos imagináveis, eu fui publicitária. E certa vez a agência em que eu trabalhava ia fazer uma nova versão de um jingle de fim de ano da RBS, a afiliada da Globo do sul do país. O jingle, que rodou por décadas e talvez ainda exista, se chama Vida. É tipo um Águas de Março tentando publicitariamente te despertar sentimentos intensos.
Por essa época em que eu trabalhava na agência, entendi que alguns momentos da nossa vida se sobressaíam à banalidade cotidiana, e comecei a chamar isso de Momento Vida (um nome ruim, eu sei). Eu conseguia identificar quando eles aconteciam. Não eram necessariamente cenas dramáticas, mas sim significativas, cenas em que o presente parecia estar sendo vivido de forma intensa, momentos esses em que meus sentidos ficavam muito mais apurados, captando cada detalhe, dentro de mim e ao redor. Se eu tivesse lido alguma coisa sobre budismo naquela época, ia dizer que talvez fosse isso: a tal da sensação de estar 100% presente no momento.
8.
John e Cynthia combinam de nos encontrar no pátio da escola em um domingo de tarde. Essa é a unica escola de ensino fundamental da cidade, e casualmente fica bem perto da nossa casa. Eles levam as cordas que John arranjou pra gente, azuis, brilhantes, compradas no porto.
O dia está cinzento e nossos pés afundam no piso feito para crianças caírem sem se machucar. John liga uma música na caixinha de som portátil e começa a nos mostrar os fundamentos do rope flow enquanto Cynthia e Anya conversam sentadas nos balanços, pra frente e pra trás, pra frente e pra trás. Eu sou ruim de dança, sou ruim de quadril, mas tento entrar no ritmo, a alegria do próprio processo da mudança, tento sentir a música com meus novos amigos naquele pátio vazio de uma cidadezinha costeira do norte da Califórnia. Eu sei o que é esse momento. Sei exatamente. Só preciso de um nome melhor para ele.
O próximo livro do Clube Nevoeiro acontece no dia 12/11. Vamos falar de Onde cantam os pássaros, da Evie Wyld.
No 10/12, discutiremos Os ratos, do Dyonélio Machado.
No ano que vem, vou implementar um formato alternando encontros estilo clube de leitura e encontros estilo bate-papo (com convidados). Mais detalhes em breve!
Os textos da nevoeiro dariam um livro e dos bons
Eu fiquei com uma dúvida: como faço para entrar no grupo do Telegram?