Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la. Colaboradores tem acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura mensal que acontece via Zoom, às 19h. Assinantes pagos também recebem o Caderno Amarelo, uma edição mensal que acompanha o processo criativo do meu próximo romance. Aqui está uma amostra aberta.
1.
É dificíl não ter saudade de um tempo que passava de outra maneira. Um tempo meio suave e meio morto, que agora você não sabe dizer se era assim porque assim eram os anos noventa, ou se todas as adolescências de todas as gerações, quando olhadas por cima do ombro de quem as viveu, parecem mesmo andar tão lentamente. O tempo no quarto das amigas de colégio. O tempo de não ter o que fazer. A antítese da lista de tarefas de um aplicativo de celular. A antítese da peça comprada na ferragem para consertar a pia e que, três semanas depois, ainda está ao lado da pia, esperando que você tenha tempo e vontade para fazer o conserto. Vida adulta.
Por que tantas coisas ficam sem conserto?
Você não sabe o que vem do fato de ter 42 anos e o que vem do fato do calendário no celular mostrar 2024 – seca recorde no Brasil, X, empatia seletiva, o tom de certeza, o ressentimento e os filtros, as pessoas que você gosta na vida real mas que nas redes sociais são insuportáveis. Aquele tempo no Instagram em que parece que você comeu um pacote inteiro da coisa mais cheia de conservantes e corantes e aromatizantes e que nem gostosa era, e agora lide com isso, se contorcendo de arrependimento e queimação no estômago.
2.
Às vezes dá vontade de só ficar com os 42 anos e jogar fora o 2024. Criar uma ficção.
3.
Nesse fim de semana, revi Dias Perfeitos, do Wim Wenders. Dá para entender porque esse filme impactou tanta gente que eu conheço, pessoas que sabem e sentem que esse ritmo do mundo está nos destruindo por dentro e por fora, e que, se não conseguem viver de um jeito mais simples, certamente admiram quem vive desse jeito; nesse caso, o homem em Tóquio que limpa banheiros, que olha para o cotidiano com maravilhamento infantil, que não precisa de tudo, mas de pouco; que não precisa de novidade, mas de coisas significativas. Esse homem nos dá uma lição, olhe para o céu, viva o agora e não as expectativas de futuro, encontre a paz interior.
Em uma resenha de Dias Perfeitos no The Guardian, Wendy Ide escreve que o título do filme era originalmente komorebi, uma palavra em japonês que literalmente significa “luz do sol entrando pelo meio das árvores”. “Mas é muito mais do que isso”, continua Ide. “[O termo] fala de uma profunda conexão com a natureza, e da necessidade de parar, de reservar um tempo para absorver e apreciar a perfeição de pequenos detalhes aparentemente insignificantes”.
4.
Os provocadores poderiam dinamitar as supostas lições que Hirayama, o protagonista de Dias Perfeitos, nos oferece. Poderiam dizer que o apego e o amor por uma mudinha de bordo japonês é insano diante das queimadas da Amazônia, da extinção dos corais, do iminente derretimento do permafrost. Uma fantasia. Uma ficção. O apego a uma narrativa dos detalhes, a uma vida de detalhes, seria uma espécie de ficção? Não sei cravar uma resposta. Mas uma coisa eu sei, ou numa coisa acredito: é difícil esperar que as pessoas se preocupem com a natureza quando a natureza é uma abstração. Quando você mora em uma cidade como São Paulo, e a natureza só chega mesmo em forma de fumaça e falta de ar.
5.
Alguns estão carecas de saber, mas muitos outros recém chegaram aqui nessa Nevoeiro, então é preciso explicar de novo, mesmo que seja com outras palavras, para que os velhos assinantes não fiquem entediados. Moro numa cidade de mil habitantes – dessa frase não escapo, é a log line dessa vida que tenho há seis anos –, cravada em uma floresta à beira do oceano Pacífico. “O que me trouxe aqui?”, muitas pessoas me perguntam quando me conhecem, mesmo sabendo que esse é um lugar que frequentemente é escolhido, quase nunca um caso de se nascer aqui, e que essa escolha é feita muito mais com o coração do que com o cérebro. Há uma mágica no lugar, um feitiço do bem – uma mágica que não funciona para todo mundo –, e que em grande parte (mas não só) tem a ver com a natureza. Também tem a ver com pessoas, com comunidade. Mas isso fica para outra edição.
Essa natureza dramática, majestosa, e na verdade tão difícil de adjetivar, porque nenhum adjetivo dá conta, foi meio que o ALGO MAIOR DO QUE EU que encontrei na minha vida. Depois dois trinta e cinco anos.
Esse ALGO MAIOR DO QUE NÓS sempre carrega uma noção de algo mais duradouro. Em outras palavras, está indissociável da nossa finitude enquanto indivíduos. É o consolo de que eu continuo – em outra dimensão, outra forma –, ou de que o mundo continua, se alimentando de mim, seguindo com o ciclo da vida.
6.
Mas aí: desastres climáticos. Tudo mudando e colapsando muito mais rápido do que se imaginava. Você acaba de se conectar com Gaia justamente quando Gaia está em agonia.
7.
Mas não parece, olhando desse ângulo. Não parece, olhando com os olhos de Hirayama. Não parece, se eu olhar as árvores do meu pátio em vez da tela do celular. Mas aí: viver na vida real ou na ficção? Só que fica mais complexo: a tela é real, e minha vida, ficção? Ou a realidade está de fato na minha vida, e a ficção, na tela?
8.
O que sem dúvida é ficção é a ideia de que a gente é capaz de lidar com esse volume de informação e essa velocidade. O desastre climático é real, mas a preocupação não faz sentido se se torna apenas mais uma ansiedade na já imensa lista de ansiedades. Se você nunca está de fato presente no presente. Ou, como diz Hirayama para a sobrinha: “A próxima vez é a próxima vez. O agora é agora”.
O próximo livro do Clube Nevoeiro é um dos meus romances favoritos da vida, Uma casa no fim do mundo, do Michael Cunningham. Bora ler? Nos encontramos no dia 9 de outubro, às 19h. O encontro ficará gravado.
No dia 13/11, será a vez de Onde cantam os pássaros, da Evie Wyld e, no 10/12, discutiremos Os ratos, do Dyonélio Machado.
Agora temos um grupo no Telegram.
A resenha de Dias Perfeitos que citei no texto é essa aqui.
Essa edição está chegando na sua caixa fora do dia padrão porque bem, a vida – ou ficção? – aconteceu. Para os colaboradores, não se preocupem, o Caderno Amarelo vai chegar pontualmente.
Tem uma banda, chama craft spells, q tem uma música com o título de "komorebi", onde a letra conversa muito com o seu texto. Vale a pena conferir.
desconfio que as gerações mais jovens - que já cresceram com smartphones em mãos - não experimentaram o tédio como nós, aquelas tardes intermináveis. aceleramos tanto o tempo que o que eles sentem agora é uma agonia de estar perdendo alguma coisa importante a cada segundo, uma angústia, uma ansiedade. acho que a natureza entra um pouco nesse pacote: o tempo dela é outro, lento, definido, preciso. não tem velocidade 2x, pular 10 segundos...