O caderno amarelo
O contra-ataque da terceira pessoa; perdendo a base com Jenny Erpenbeck; uma aula grátis sobre começos
Essa é uma edição só para colaboradores, que acompanha o processo de criação do meu próximo romance. Nesse mês, resolvi deixar a edição aberta para anunciar algo que tem tudo a ver com os temas que trato aqui: no dia 27, vou dar uma aula gratuita em parceria com a Seiva chamada Comece sua história. Mais detalhes ao final!
Um mês atrás, você poderia me ver na varandinha onde gosto de escrever comemorando a escrita dos dois primeiros parágrafos do meu livro com os braços para o alto. Eu olharia para a sequoia a cinco metros de mim e agradeceria pela graça alcançada, certa de que tinha começado mais uma jornada de dois ou três anos cujas consequências são impossíveis de prever. Eu tinha certeza, em resumo, de que estava com o pé na estrada. Nem sempre é gostoso dizer isso, mas o tempo é dinâmico e as percepções podem se alterar rapidamente: escrevi três páginas – primeira pessoa, como fluía bem! – para depois voltar cabisbaixa à fase do “hm, ainda não parece certo”.
O que mudou? Comecei a ter problemas com a primeira pessoa. Não era a voz que eu queria, embora eu tivesse alguma facilidade em escrever daquele jeito. Nas últimas semanas, além disso, eu estava lendo dois livros que acabaram aumentando minhas ruminações literárias: Escrever é muito perigoso, da polonesa Olga Tokarczuk, e o romance Kairos, da alemã Jenny Erpenbeck. Voltarei a eles em breve.
Aconteceu também uma coisa engraçada, muito mais da ordem do oculto do que das decisões lógicas. O começo que eu acreditei ser o começo “verdadeiro”, até não ser mais, era uma cena em um quarto. E então, quando dei o restart, joguei de novo uma terceira pessoa e coloquei as personagens em movimento, tudo mudou. Bruxaria, superstição, apego estético bobo? Tanto faz. Agora sim, pé na estrada.
1. A terceira pessoa como contra-ataque
Seria ingênuo promover aqui uma guerrinha entre primeira e terceira pessoa, advogando pela superioridade de uma sobre a outra. Cada texto literário pede uma voz diferente, que realce as intenções da autora e alcance os cantos mais obscuros da sua mente. Nos últimos anos, tenho gostado da versatilidade da terceira pessoa. Ela é ótima se você quer contar a história íntima de uma personagem, e, ao mesmo tempo, dar um peso igualmente importante ao panorama geográfico, histórico, cultural, filosófico, etc. Ela permite abrir o olhar, sair do filtro do “eu”. Pode ficar mais caretona do que a primeira? Pode. Pode ficar menos empática? Pode. Mas é tudo uma questão de mexer com ela, testar. Sovar como uma massa de pão.
Ouvimos um coro descomunal de vozes em primeira pessoa todo o dia nas redes sociais (aqui estou eu, aqui está minha voz também!). Nesse sentido, pode ser interessante tentar trabalhar com outra dimensão estética. Quando recebeu o Nobel – o discurso está incluído em Escrever é muito perigoso –, Olga Tokarczuk sugeriu que, embora reconheça a importância e o percurso da primeira pessoa (tão antigo quanto o da civilização humana), “faltam-nos novas maneiras de narrar o mundo”.
Talvez em um mundo polifônico e fragmentado, onde diversos narradores em primeira pessoa gritam todos ao mesmo tempo em tuítes, blogues e mídias, precisamos de narradores totalitários, totais, em quarta pessoa, em várias pessoas, além de pessoa. Narradores com terceiro olho, sexto sentido, panópticos e capazes de serem novos passageiros de Nostromo.
Nostromo é a nave em Alien, o oitavo passageiro.
2. Deixa eu ver como funciona esse livro aqui
Existe um tipo de pesquisa que eu faço quando escrevo que é muito consciente e racional, e às vezes ela envolve também obras literárias. Tenho tentado ler romances que se passam no Egito para ter algum arsenal de detalhes, o tipo de detalhes que não se acham nos livros de História, o doce que as pessoas pediam em certo café, quanto custava para alugar uma daquelas casinhas na beira da praia em Alexandria, as roupas das mulheres, os cheiros. Também costumo ler romances que tenham uma estrutura próxima ao romance que quero escrever, e foi assim que cheguei a Onde cantam os pássaros, da Evie Wyld. O livro foi publicado no Brasil pela Darkside e passou bem distante do meu radar porque, enfim, o mundo literário, ainda que pequeno, é infelizmente subdividido em bolhas. Achei o romance sensacional. Tenho um fraco por histórias de mulheres duronas. Acabei escolhendo Onde cantam os pássaros como a leitura de novembro do Clube Nevoeiro, e não vou contar a vocês sobre a tal estrutura para não estragar a fruição.
A leitura me ajudou no meu projeto? Difícil dizer. Nunca dá para apontar com precisão o quanto, e de que maneira, a arte que você consome vai entrando na sua arte. Mas às vezes você lê uma coisa que dá um tremor, desestrutura as bases, e esse foi o caso com Kairos, da Jenny Erpenbeck. Esse livro sim tinha entrado no meu radar – levou o International Booker Prize –, tem capa linda na edição da New Directions, estava bem na minha frente quando entrei em uma livraria em San Francisco já decidida a comprar alguma coisa, enfim, levei para casa, até porque a autora é alemã, e eu ultimamente ando com ranço de ficção americana.
Puta livro lindo. História de amor que vira uma armadilha, ao mesmo tempo que a Alemanha Oriental vai se desfazendo diante de nós. Frases altamente sublinháveis e uma estrutura solta. Resultado? Entrei numas.
3. Vozes de fora e vozes de dentro
Um pouco por causa da Erpenbeck, voltei à terceira pessoa. Muito por causa dela, fiquei questionando o jeito que eu monto os capítulos nos meus livros. E se eu não ficasse tão apegada às cenas longas, com começo, meio e fim? E se eu fizesse cortes diferentes, fragmentasse mais? E logo em seguida: o mundo não precisa de mais um livro fragmentado. E logo em seguida: a Nevoeiro é meu projeto fragmentado, chega. E aí sentei. E aí demorei umas cinco horas para escrever dois parágrafos. Saí feliz.
Na primeira edição desse caderno, eu disse que meu futuro livro seria um “Twin Peaks no oeste do Paraná”. Também disse que era importante ter alguma ideia de onde se quer chegar para que então se chegue em outro lugar. “Você mira num ponto e acerta vários centímetros para o lado”, disse. Todos os livros são escritos assim.
Gosto do que a Olga Tokarczuk fala sobre a descoberta da voz de um livro (que, segundo ela, já vive em algum lugar dentro de nós, esperando ser revelada):
Eu não sabia naquele tempo como funcionavam as vozes interiores: que tinham predileção por certos tópicos; que podiam ser nutridas por um tipo de literatura ou, pelo contrário, levadas à fome com outros; que umas vinham mais naturalmente, enquanto outras exigiam que se lutasse por elas. Com umas o trabalho ia de vento em popa e com outras era necessário arrancar cada frase.
Aceito a luta. Aceito que, sobretudo no começo, a gente arranca cada frase mesmo. E aceito igualmente que não faz sentido se debater contra a voz: alguma coisa dentro de mim quis tirar a personagem do quarto e colocá-la em movimento, passeando pela paisagem. Aceito o movimento. Aceito não entender direito o que me move.
Comece sua história é a aula gratuita que vou da no sábado, dia 27, em parceria com a Seiva. Para participar, basta se inscrever aqui.
As edições do Caderno Amarelo, exclusivas para colaboradores, rolam uma vez por mês. Se você gostou, considere fazer um upgrade da sua inscrição. Colaboradores da Nevoeiro também têm acesso ao clube de leitura que rola uma vez por mês e que, a partir do próximo encontro, será gravado para quem não puder assistir ao vivo.
Segue nosso calendário de leituras:
12/8 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
11/9 – Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Elvira Vigna
9/10 – Uma casa no fim do mundo, Michael Cunningham
13/11 – Onde cantam os pássaros, Evie Wyld
10/12 – Os ratos, Dyonélio Machado
Um exercício que eu faço muito é escrever uma cena na primeira pessoa, depois reescrever na terceira, e viceversa. Essa edição tá especialmente crocante e cremosa, vou recomendar aos meus alunos!
há personagens que, de tão forte, ditam nos escritores o modo como serão escritas. tenho a impressão de que são essas que são bons livros.