Essa é uma edição mensal só para colaboradores, que vai falar do processo de criação do meu próximo romance à medida que ele se desenrola.
Ainda vejo muito pouco. Mata de araucárias, um casebre de madeira expelindo fumaça no crepúsculo, gritos de, sei lá, uma anta (antas gritam?), os faróis de um Simca-Chambord iluminando a terra vermelha enquanto se desloca para o centro de Cascavel, no oeste paranaense. Meados dos anos 1960. O bar de um hotel que recebe negociantes de madeira, poltronas de couro. Tramoias violentas pulsando por baixo dos chapéus dos homens. Então, em uma transição abrupta, minha cabeça cruza o Atlântico e volta ainda mais dez anos, Alexandria, Egito, na década de 1950, ajuda se eu escutar as gravações fantasmagóricas da grande cantora egípcia Oum Kalthoum, vejo um homem que ainda é meu avô na Corniche, olhando o Mediterrâneo, totalmente ciente de que nunca mais verá esse lugar de novo, que em duas semanas pegará um navio para a América do Sul com toda a família, um homem que, nesse processo de escrita, logo terá que deixar de ser meu avô.
1. Esponja
Ainda estou no que chamo de fase da esponja: a ideia está lá, e vai se alimentando de tudo o que vê pela frente. Uma parte dessa alimentação é involuntária, como quando eu assisto aleatoriamente um documentário sobre O Iluminado (Room 237) e tenho a sensação de que isso está ajudando meu projeto, embora eu não saiba exatamente como, e nem me interesse saber. É também involuntária quando descubro sem querer uma banda turco-holandesa chamada Altin Gün que se torna a melhor coisa que descobri no último ano, e não só isso, mas também vira uma espécie de ponte entre minha sensibilidade de pessoa nascida nos anos oitenta e esse orientalismo que preciso buscar – a busca não é estritamente racional, mas toca nas minhas origens levantinas e me deixa arrepiada.
A fase esponja tem também um lado bem consciente, uma vez que abrange o que vamos chamar de pesquisa. E a pesquisa se divide em alguns temas centrais: Alexandria e expulsão dos judeus do Egito na década de 1950; desmatamento de araucárias no sul do Brasil; transtorno obsessivo-compulsivo. Nessa fase, costumo pesquisar nas fontes mais bisonhas que encontro, que incluem artigos acadêmicos, grupos nostálgicos de facebook, livros lançados por editoras universitárias, autobiografias de figuras desimportantes, sites que parecem ter sido programados nos primórdios da Internet. Há também um momento de falar com pessoas e, se necessário, um momento de fazer viagens. Nesse projeto em questão, a parte viagem fica seriamente comprometida porque não há a menor chance de eu ir para o Egito (assunto que certamente vou desenvolver em futuras edições).
2. Mapa atmosférico
Uma das primeiras coisas que costumo pensar é no tom da obra. Eu diria que o tom, a atmosfera, é uma espécie de alma de um livro, e portanto uma decisão muito mais fundamental do que certas decisões técnicas que deixam muitos escritores iniciantes angustiados, como a escolha entre uma narração em primeira ou terceira pessoa. E pensar no tom vai inevitavelmente remeter ao tom de outras obras (romances, filmes, séries, bandas, arte visual). Isso não é um problema. Lembre-se que você precisa ser esponja, e que originalidade é basicamente misturar um monte de coisas e rearranjá-las através de sua maneira única de escrever e organizar a história.