1.
Julia Butterfly Hill tinha 23 anos quando subiu em uma sequoia-vermelha com um arnês e cordas de rapel para tentar evitar que aquela árvore fosse derrubada. Chamavam-na de Luna. Luna, esse ser majestoso de quase cem metros de altura, estava nas terras da Pacific Lumber, e todas as árvores ao redor dela iam sendo gradativamente levadas ao chão. Era 1997, perto de Scotia, Califórnia, e Julia tinha tido uma experiência de quase morte em uma rodovia no Arkansas. Era filha de um pastor. As duas coisas explicam um pouco o que ia acontecer. Um ano depois do acidente, depois de um tratamento barra pesada para corrigir as sequelas, ela pegou uma carona meio aleatória para o oeste do país. Alguém que Julia encontrou no caminho disse “Você tem que ir ver a Costa Perdida”. Ela foi. Desceu do carro, entrou na floresta, viu as sequoias-vermelhas e se ajoelhou chorando. Mais tarde, descobriu que a tal Pacific Lumber tinha planos de desmatar uma montanha inteira ali perto. Achou que aquela era sua missão no mundo – e era –, salvar as árvores, então procurou algumas organizações ambientais e, meio sem querer, foi designada para subir em uma sequoia chamada Luna, um protesto pacífico que os ativistas chamam de tree-sitting. Era só por uns dias. Julia Butterfly ia passar quase dois anos sozinha em cima daquela árvore.
2.
Há algumas semanas, recebi a visita de um ator. Vamos chamá-lo de C. Ele nunca tinha visitado Mendocino e estava curioso para conhecer os lugares que aparecem em O Clube dos Jardineiros de Fumaça e, mais do que isso, queria entender como tinha sido o processo de escrita do livro, então eu o levei para cima e para baixo, tentando encontrar aquela textura levemente mais sinistra do que minha vida atual e de verdade. Mendocino, a cidade, é ajeitadinha demais para um eventual filme. Dirigimos portanto até Point Arena, o primeiro lugar onde fiquei no já distante 2015, trabalhando no livro.
Point Arena é sinistra. Uma cidade abandonada do Velho Oeste, mas com praia, e estradas que você percorre sem passar por uma alma por quilômetros. Um cassino no meio de uma reserva indígena, com dois carros no estacionamento e uma velha fumando diante de um caça-níquel. Em 2015, eu saí direto de Porto Alegre para esse lugar, e até hoje é difícil entender por que me coloquei naquela situação enquanto minha vida amorosa explodia. Não me lembro de ter escrito uma única linha na casa que aluguei, que também transpirava bad vibes. De dia, eu pegava uma trilha atrás do escritório do xerife e ficava ouvindo War on Drugs, arrastada por aquela melancolia toda. As noites na casa no meio do nada eram especialmente difíceis.
Mas aí me ocorre, em 2024, chegando naquela cabana de novo, depois espiando pela janela com C., quase me vendo ali dentro naquele tempo que já foi: a gente não viaja sozinha necessariamente porque vai ser maravilhoso e divertido. A gente precisa, e só. Provação, encarar os demônios, descobrir quem somos sem os outros: não é para ser fácil, mas sempre acaba apertando uns botões interessantes.
3.
Escrevo essa edição de um lugar quase na fronteira do Oregon, a cinco horas e meia da minha casa. Pela primeira vez na vida, estou acampando sozinha. Tenho dificuldade de enxergar esses movimentos para além do capricho. Acabo sempre desqualificando a mim mesma, como se estivesse “brincando” de ficar sozinha. No centro de visitantes do Jedediah State Park, compro o livro que conta a história da Luna e da Julia. Monto a barraca com alguma dificuldade – parece que todos os passos dependem de uma segunda pessoa para ficar segurando –, depois decido fazer uma trilha de oito quilômetros. Na beira do rio Smith, quase no início da trilha, um cara de uns sessenta anos puxa papo e larga um “eu me sinto muito sozinho aqui”, seguido de um “isso é perfeito, essa vista linda e uma menina”. Sempre tem um homem para tentar arruinar a experiência de uma mulher viajando sozinha. Aperto o passo e transfiro o canivete para o bolso do short.
4.
Os lenhadores da Pacific Lumber fizeram de tudo para tirar Julia de cima da sequoia-vermelha. Xingaram, ameaçaram, bloquearam o fornecimento de comida (de tempos em tempos, um ativista de codinome Shakespeare ia lá levar farinha de cuscuz, granola, aveia). Um dia, Julia quis tentar convencê-los de que ela era mais do que uma “abraçadora de árvore, comedora de granola, uma ambientalista hippie suja com dreads no cabelo”. Os dois lados não se entendiam porque, segundo ela, os lenhadores tinham uma pré-concepção equivocada de quem ela era, não conseguiam enxergar o ser humano por trás do estereótipo. Então Julia colocou dentro de um saco um pouco de granola e uma fotografia tirada alguns meses antes de ela subir na Luna pela primeira vez. Mandou o saco lá para baixo dizendo “Tenho um presente para vocês.”
Era o fotografia do cartão do último Natal. Ela estava de vestido, salto alto, maquiagem, cabelo arrumado.
“Meu Deus, você é assim mesmo?”
“Aham.”
“Então que diabos você tá fazendo em cima de uma árvore?”
5.
No camping e no parque inteiro, não há sinal de celular. Dirijo de noite até Crescent City só para ligar pra Melissa. Que saudade.
6.
Há uma luta constante entre quem você seria naturalmente – de acordo com a sociedade, a família, o contexto inevitável – e quem você gostaria de ser. Desse contato violento de placas subterrâneas, emerge uma personalidade.
7.
Julia Butterfly Hill fez 24 anos e depois 25 anos no topo da sequoia chamada Luna. Foram 738 dias sem pisar no chão. A vida passou a ser normal lá em cima (e a árvore foi salva).“Há dois lugares da árvore onde eu gostava de dançar”, escreveu no livro que eu escolhi ler nesses dias acampando. “Bem no topo, eu dançava com meu tronco enquanto me segurava com as pernas. Um pouco abaixo, havia dois galhos grandes. Eu segurava um deles com os braços e me balançava da cintura para baixo.”
8.
No fim de semana em que C. esteve em Mendocino, depois de ter ficado óbvio que a economia da região havia mudado – da maconha para alguma outra coisa –, C. me perguntou: “Como você acha que o Arthur tá agora?” (Para quem não sabe, Arthur é o protagonista do romance). Na hora, eu não soube exatamente o que responder; para mim, os personagens param o que estavam fazendo assim que os livros terminam. Mas talvez não parem. Estou aqui no camping sozinha pensando nisso. O Arthur continua em Mendocino, eu deveria ter dito. Casou com a Tamara. É feliz.
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Se você acha que a hora para ler O Clube dos Jardineiros de Fumaça é agora, o livro está com desconto na Amazon (e o Diorama com um desconto ainda maior).
Seguem as datas dos próximos encontros do Clube Nevoeiro. Para o ano que vem, estou pensando em mudanças. Em breve consultarei vocês sobre isso ;)
11/9 – Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Elvira Vigna
9/10 – Uma casa no fim do mundo, Michael Cunningham
13/11 – Onde cantam os pássaros, Evie Wyld
10/12 – Os ratos, Dyonélio Machado
"Há uma luta constante entre quem você seria naturalmente -de acordo com a sociedade, a família, o contexto inevitável-e quem você gostaria de ser. Desse contato violento de placas subterrâneas, emerge uma personalidade." - deveríamos fazer camisetas com essa frase.
Caramba, achei que “dois anos em cima de uma árvore” fosse uma metáfora. Muito bom!!!!