Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la. Colaboradores tem acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura mensal que acontece via Zoom, às 19h. Assinantes pagos também recebem o Caderno Amarelo, uma edição mensal que acompanha o processo criativo do meu próximo romance. Aqui está uma amostra aberta.
1.
“Como você consegue escrever uma newsletter e um romance ao mesmo tempo?”, um leitor pergunta. Bom, eu não sei se eu consigo. Eu nunca tentei. Vou tentar agora. Tudo é texto, parece fácil, mas é difícil modular. Ontem escrevi uma página sombria, morte sussurando na nuca, disputa violenta por terra, um barraco no meio da mata. Na manhã seguinte, dicas de escrita (a voz na minha cabeça que precisa ser assertiva e motivacional, eu tentando procurar vestígios da minha breve carreira publicitária). E agora estou aqui. Ópera, música pop, bluegrass. Eu queria começar esse bluegrass – outro dia, assistindo uma família tocar numa cervejaria com uma expressão meio beata e meio sinistra, um cara olha para mim e grita “você não acha que as músicas parecem todas iguais”, e eu digo “bom, bluegrass é isso aí, não é?” –, hoje eu queria começar esse bluegrass contando uma coisa que aconteceu no meio da minha terapia online. Não faço sempre. Uma sessão a cada dois ou três meses, para calibrar os demônios. Nesse dia, saquei o livro de ensaios da Olga Tokarczuk e li um trecho para a terapeuta. Página 130. Tokarczuk está dizendo que todas as escolhas da sua vida a conduziram para o desejo, já expresso aos doze anos, de escrever livros. Então lá vem uma lista de grandes decisões de vida, e finalmente a parte que eu sublinhei:
A mudança para uma aldeia bucólica e a descoberta de que a solidão e a presença da natureza constituem um rico alimento para a imaginação. A intuição que me mandava ficar sempre longe do centro, onde a atividade febril e a sede constante de estímulos tanto inspiram quanto destroem a individualidade do escritor.
Instantes depois, na minha aldeia bucólica, ouço uma batida na porta.
2.
“A intuição que me mandava ficar sempre longe do centro”. Daqui a pouco é meu aniversário. Vou fazer 42 anos e adoro as bordas.
3.
“Vai lá abrir”, diz a terapeuta.
Estou sozinha em casa, Melissa foi andar de mountain bike, abro a porta.
São três policiais, dois tão próximos que dá pra sentir o cheiro de sabão em pó dos uniformes, outro no alto da escada, só olhando os arbustos, o carvalho.
“Boa tarde. A gente tá procurando o Kenneth.”
Kenneth? Ah, sim o Ken. Meu vizinho de setenta anos que usa camiseta de metal e adora cortar grama quando estou tentando escrever. O Ken que faz o som das peças no teatro comunitário. O Ken que tem duas calopsitas em uma cabana escura lotada de coisas. O Ken marido da Bessie. O Kenneth com quem eu frequentemente converso sobre o lixo e sobre as investidas de um urso no lixo.
“Ele mora naquela outra casa, a que vocês acabaram de passar.”
“Você sabe que carro ele tem?”
“Uma picape branca e um Corolla.”
“Aquele Corolla ali do pátio?”
“Aquele é meu.”
“Obrigada, senhora.”
Nunca descobri o que o Ken fez, ou o que achavam que ele tinha feito. A Bessie e ele vêm jantar aqui em casa hoje.
4.
Quase 42 anos. Passei uma semana na Sierra Nevada com a Melissa e é a primeira vez que viajo no período das férias americanas. Cabaninhas ao redor de um lago alpino, homens e mulheres pescando truta arco-íris. O planeta aquecendo, a gente entrando nos lagos a três mil metros de altitude. Os americanos procriam demais. A gente fazendo de tudo para evitar crianças miando ao nosso lado. Levei dois livros para essa viagem. Um era o Walden do Thoreau, porque eu não me importo de ser clichezona nessas horas, mas possivelmente essa vai ser a terceira tentativa fracassada de ler Walden até o fim. O outro era a biografia do David Lynch. Foi esse aí que acabou fazendo todo o sentido.
5.
Sempre adorei os filmes do David Lynch, e minha relação com a obra dele evolui em ondas, às vezes eu esqueço que ele existe, outras vezes começo a rever tudo o que o sujeito fez e sinto um ímpeto incontrolável de comprar chaveirinhos e adesivos do Twin Peaks. Estou no pico dessa onda e já encomendei dois pôsteres. Quase nunca leio biografias – você me viu falando na última edição que eu não me interessava em absoluto pela vida privada da Alice Munro –, mas o Lynch produz uma arte tão esquisita e única que é impossível não se perguntar Meu deus quem é esse cara? O fato de ele ser praticante há cinquenta anos da tal meditação transcendental só deixa tudo mais bizarro; são os vinte minutos diários repetindo o seu mantra que produzem aquela cena do vilão chorando agarrado a um retalho de veludo? Como você guarda tanta escuridão dentro de você sem que isso escorra para o resto da sua vida?
6.
Espaço para sonhar foi escrito em um duplo movimento: a biógrafa Kristine McKenna relata certo período da vida do artista baseado em relatos de terceiros, e logo em seguida vem o próprio Lynch narrar a sua versão dos fatos (frequentemente rola um “não me lembro disso” ou “acho que não foi assim que aconteceu”). Há muitos detalhezinhos interessantes sobre a gênese dos filmes. Por exemplo, aquela cena genial do Estrada perdida em que alguém fala no interfone do protagonista “Dick Laurent is dead” aconteceu de verdade com o Lynch, acredite. Mas a coisa mais tocante de se ver é o artista nascendo, se transformando ao longo dos anos, mas sempre mantendo aquela integridade rara, aquela fidelidade convicta a um projeto artístico que, ele sabe, nunca vai agradar as multidões.
7.
Mais pro fim do livro, ele conta que um dia encontrou o Stephen Spielberg em uma festa e disse: “Você tem sorte porque as coisas que você ama, milhões de pessoas amam, e as coisas que eu amo, milhares de pessoas amam.”
8.
Esse é um caso de uma arte que eu amo e uma pessoa que eu também consigo amar. O que eu tiro dessa biografia, além das saborosas anedotas de filmagens, é que Lynch sempre respeitou o tempo das ideias; foi fiel à sua arte e aos seus temas; e nunca deixou de seguir sua intuição, mesmo quando a indústria o pressionava e tentava moldá-lo à sua lógica do tempo e do dinheiro.
Alguns pessoas simplesmente adoram as bordas.
E talvez elas existam em número suficiente a ponto de essa camiseta ser possível (Lynch provavelmente odeia toda essa memorabília. Ou não. Talvez um dia eu apareça por aí vestida assim).
Ainda há vagas disponíveis no meu curso de escrita criativa. Corre lá! O valor proporcional é válido só por mais alguns dias.
Seguem as datas dos próximos encontros do Clube Nevoeiro. Para o ano que vem, estou pensando em mudanças. Em breve consultarei vocês sobre isso ;)
11/9 – Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Elvira Vigna
9/10 – Uma casa no fim do mundo, Michael Cunningham
13/11 – Onde cantam os pássaros, Evie Wyld
10/12 – Os ratos, Dyonélio Machado
O Ken apareceu para jantar?
Eu até consideraria entrar para um clube de leitura que tem um livro de Cunningham e outro do (imerecidamente) esquecido gaúcho Dyonélio Machado, mas estou f* old & f* tired to do that.