Nevoeiro #39
Alice Munro; a revelação na vida e na ficção; lançamento do meu curso de romance
1.
Em 2022, a Folha me convidou para escrever o obituário da Alice Munro. Ela já estava com 91 anos, tinha demência há cerca de dez e bom, uma hora ia acontecer. Fiquei de pensar. O jornalista sabia que Munro era uma das minhas escritoras favoritas, talvez a maior de todas, mas entrei numas superstições de que eu não deveria escrever um texto falando da morte que ainda não havia acontecido, como se meu pequeno gesto de escrita num país tão distante fosse abalar as engrenagens da roda do destino. Disse não. Um obituário, além do mais, precisa dar conta de toda uma vida, e eu não tinha nenhum interesse pela vida pessoal da Alice Munro. No máximo, imaginava ela toda senhorinha num café da cidade pequena onde possivelmente deveria morar, comendo devagar uma fatia de torta, cumprimentando o carteiro, cumprimentando o encanador. Gostava de imaginar Alice sorrindo no café, só isso. Gostava de imaginar a fatia de torta.
2.
Munro nunca escreveu um romance, mas seus contos eram longuíssimos e envolviam muitas décadas da vida das personagens, e os acontecimentos, embora raramente grandiosos, sofriam consequências que se estendiam no tempo, como se os conflitos nunca pudessem se resolver de imediato, ou como se tudo que parecia resolvido sempre insistisse em retornar.
3.
Um dia, em algum lugar, li que Munro escrevia contos porque ela precisava aproveitar as brechas da maternidade e dos trabalhos domésticos para criar suas histórias; simplesmente não era possível encaixar um romance nesse cotidiano de mãe e esposa dos anos sessenta. Repeti muitas vezes essa informação, em entrevistas, bate-papos: veja só, o tempo escasso que havia disponível moldou o formato; três, quatro décadas depois de Um teto todo seu e nada tinha mudado, as mulheres que queriam escrever continuavam muito longe de qualquer condição ideal de concentração, mas que bom, que mágico, que os contos de Alice Munro puderam surgir entre mamadeiras, choros e uma pia de louça suja.
4.
Se você passou as últimas semanas nesse planeta, deve saber do texto que Andrea Skinner, filha de Munro, publicou no jornal Toronto Star. Andrea conta que foi abusada por Gerald Fremlin, marido de Alice, quando tinha nove anos. Andrea relatou o abuso para a mãe apenas em 1992 – naquela altura, tinha 25 anos –, mas aparentemente outros membros da família já sabiam do fato desde 1976. Após a confissão da filha, Munro se separou de Fremlin, mas os dois reataram não muito depois disso. Em 2005, Fremlin foi acusado de atentado violento ao pudor e se declarou culpado. Munro e Fremlin continuaram juntos até a morte dele, em 2013.
O tribunal da internet não foi gentil com a ganhadora do Nobel de 2013: como uma escritora tão sensível, que retratou sobretudo personagens femininas, poderia esconder um segredo tão abominável? Como foi capaz de perdoar aquele homem?
5.
Curioso que essa história real também se espicha e reverbera em uma enorme fatia de tempo. Ela poderia ter escrito sobre isso, penso. E logo descubro que, de certa forma – é sempre de certa forma – escreveu.
6.
A imprensa americana começa a falar de um conto chamado Vandals que Munro publicou na New Yorker nos anos noventa, não muito depois de descobrir sobre o abuso. Uma amiga me manda o conto (“Que extraordinário esse conto. Nota curiosa: o personagem é um taxidermista”). Fico uns dias ainda olhando para as sombras da Alice real, expostas, analisadas à exaustão, como se fosse possível extrair daí uma verdade totalizante. Então sento para ler. Como frequentemente acontece nos contos da canadense, Vandals é uma história de personagens que convivem, se afastam, depois voltam a se reencontrar em circunstâncias esquisitas. Como sempre, a montagem espaço-temporal da narrativa tem uma complexidade potente; Munro é uma gigante jogando com suspense e expectativas.
Não necessariamente nessa ordem, Vandals conta a história de um casal, Bea e Ladner, e da vizinha – então criança – Liza. A narrativa começa com Liza adulta, Bea velhinha, Ladner morto. Entendemos que Ladner foi submetido a uma operação cardíaca e não sobreviveu. Entendemos que Bea pede para Liza dar uma olhada na casa deles – uma propriedade rural – enquanto os dois vão à cidade grande para a tal intervenção médica. Entendemos que Liza vai à casa e destrói o lugar completamente, mentindo depois que jovens vândalos invadiram a casa. Entendemos que, na infância, Liza e o irmão eram muito próximos de Ladner, um taxidermista e adorador da natureza que gostava de ensinar às crianças coisas sobre o mundo natural. Entendemos que Liza e o irmão foram abusados por Ladner.
7.
Vandals não é exatamente uma chave para compreendermos o lado sombrio de Alice Munro. Nenhuma obra pode explicar completamente um autor. Mas é interessante perceber como a narração desenha Ladner: um macho escroto que trata Bea mal o tempo inteiro, mas que, ainda assim, parece brilhar em sua aura fascinante de homem bruto. E isso mesmo através de uma voz em terceira pessoa (a suposta neutralidade da terceira pessoa é uma falácia, mas melhor não entrar nesse assunto agora). O abuso, em contraste, é tão discreto e veloz que a leitora pode precisar ler aquelas duas ou três linhas de novo para ter certeza do que aconteceu. O foco da narrativa, no fim das contas, parece ser na vingança, o tal do prato que se come frio, décadas e décadas mais tarde. A vingança de Liza foi destruir a casa do abusador. A vingança de Andrea foi jogar na lama o nome da mãe.
8.
Outra amiga me diz, na semana em que o abuso é revelado: “Não te passa pela cabeça que a própria Alice podia ter vivido um relacionamento abusivo com esse cara?”
9.
Alice Munro nunca foi uma grande fã da maternidade. Há pistas deixadas aqui e ali nos contos. Em uma cena de Jacarta – que uso no meu curso para falar de descrição de espaço –, as mamães que vão à praia com os filhos, baleias infláveis, chapéus e loções são retratadas com negatividade diante das heroínas e desencaixadas Kath e Sonje:
Suas responsabilidades [das mamães], a vasta prole e as prerrogativas maternais, a autoridade que exercem, tudo isso é suficiente para aniquilar a água reluzente, a angra pequena e perfeita com seus arbustos de galhos vermelhos, os cedros que emergem tortos das altas rochas. Kath, em especial, sente a ameaça que elas representam porque agora também é mãe. Enquanto dá de mamar ao bebê, frequentemente lê algum livro e às vezes fuma um cigarro para não cair num pântano de funções animais. E amamenta a fim de encolher o útero e perder a barriguinha, não apenas para prover o bebê – Noelle – de preciosos anticorpos maternais.
E a história de Silêncio então, um dos três contos que deu origem ao filme Julieta, do Almodóvar? Uma mãe destruída – e lá de novo a longa passagem do tempo – pelo desaparecimento repentino e voluntário da filha. A maior das vinganças.
Obviamente não li todos os contos que Munro escreveu, mas, dentre os muitos que conheço, não lembro de nenhum em que o foco esteja na comunhão entre uma mãe e uma filha.
10.
Em 2002, Sheila Munro – a filha mais velha de Alice – publicou um livro chamado Lives of mothers & daughters: growing up with Alice Munro. Em uma resenha da obra para o New York Times, Kathryn Harrison escreve:
Quanto mais Sheila Munro lê — e se aprofunda — nos contos e entrevistas da mãe, e quanto mais descobre e compartilha a história de sua família, menos sabemos sobre o que deve necessariamente permanecer misterioso: a relação de uma escritora com seus temas, e como seu foco artístico pode às vezes se alinhar, às vezes divergir — ou até mesmo eclipsar — o trabalho de criar três filhas.
Uma mãe não é sequer a mesma mãe para todas suas filhas. Como é que nós, mantidos do lado de fora, podemos ter a pretensão de desvendar Alice Munro?
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Nesse sábado, meu curso de romance – agora em parceria com a maravilhosa Seiva – vai ser oficialmente lançado na aula gratuita Comece sua história. As leitoras e leitores da Nevoeiro que deixarem seu nome nesse formulário vão ter preferência na pré-venda (com desconto especial e uma surpresinha a ser anunciada no sábado!).
Agora os encontros do Clube Nevoeiro serão gravados e ficarão disponíveis por duas semanas para quem não conseguiu participar ao vivo. Aqui está nossa agenda:
12/8 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
11/9 – Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Elvira Vigna
9/10 – Uma casa no fim do mundo, Michael Cunningham
13/11 – Onde cantam os pássaros, Evie Wyld
10/12 – Os ratos, Dyonélio Machado
que incrível, carol!!! eu não consigo desvendar o que é que sinto ao ler cada texto seu. Um misto de mistério e novos conhecimentos, uma sensação de proximidade independente de vc morar num longíncuo countryside da califórnia, um efeito fragmentos/nevoeiro/a magia da literatura, uma "entrangeira" meio bruxa-madrinha que te faz ver cercas coisas com outros olhos. <3
Lembro-me de quando trabalhava no jornal e Ariano Suassuna caiu doente. Na ocasião me pediram pra escrever o obituário e liguei pra Braulio Tavares que disse: "Eu me recuso a falar sobre um morto vivo". Isso me marcou demais, até hoje essa frase permanece pra mim como um ponto de suspensão quando penso no assunto.