1.
Em Porto Alegre, derrubaram uma feia passarela de concreto. Fizeram isso por causa do Corredor Humanitário. Elevaram a avenida para fugir da água. Os caminhões são altos. Vi gente sofrendo com a demolição da passarela, que ligava a rodoviária ao centro da cidade. Gente evocando memórias. Gente dizendo que Porto Alegre morreu com a passarela. A pandemia era silenciosa, invisível, e o tempo passando vinha com a esperança de um desfecho único e milagroso: a vacina. As enchentes são pura materialidade. A passarela demolida. As linhas retas marrons que a água deixou. Poltronas e mesas de jantar inchadas no meio da rua, esperando pelo caminhão da prefeitura.
2.
Qualquer um pode dizer que sabia mais do que Sebastião Melo e Eduardo Leite. Mas é preciso também dizer: nunca imaginei Porto Alegre como cenário de uma catástrofe dessa envergardura. A sociedade não imaginou. Os quatro rios que desaguam no Guaíba: Gravataí, Sinos, Caí e Jacuí. A saída estreita que liga a Lagoa dos Patos ao Atlântico. Parece que só no desastre aprendemos nossa própria geografia.
3.
Estranhamente – ou nem tanto –, minha relação com desastres começou quando me mudei para a Califórnia, em agosto de 2018. A Califórnia é um território de abalos sísmicos frequentes, e desde o dia em que coloquei os pés no estado cujas entranhas são cortadas pela falha de San Andreas, entendi que terremotos fazem parte da cultura local, tanto quanto a negação ilógica de que uma catástrofe de grandes proporções venha (ou volte) a acontecer. Terremotos são aleatórios e incontroláveis, mas há outro tipo de desastre cuja responsabilidade é humana, e que marca ainda mais a vida na Califórnia: os incêndios florestais. Ainda no meu primeiro ano aqui, meus sentidos captaram fogos crescendo a centenas de quilômetros de distância: cheiro de madeira queimada, cinzas flutuando como pólen, o dia escurecendo de repente porque o sol virou uma bola vermelha para ser vista a olho nu. Tive que aprender rápido sobre a temporada dos incêndios, acompanhando mapas em tempo real que mostravam o avanço progressivo dos diversos fogo queimando pelo estado, o número de mortos, a quantidade de casas consumidas pelas chamas, as discussões sobre responsabilidade. Bairros inteiros virando pós. As casas sendo reconstruídas exatamente no mesmo lugar.
4.
Em janeiro de 2020, visitei os restos de uma cidade que havia sido 95% consumida pelo fogo. Paradise, 26 mil habitantes antes de o incêndio chegar. Eu tinha proposto para a Piauí um ensaio, e eles disseram sim. Fiquei num motelzinho de uma cidade chamada Chico, que a Piauí não estava pagando, e no dia seguinte encontrei Lorraine Dechter, uma moradora de Paradise. Foi nesse dia também que vi Paradise pela primeira vez. Boa parte da limpeza já fora feita – quatorze meses haviam se passado –, de maneira que havia poucas carcaças de carro, móveis enegrecidos ou casas com pedaços faltando; Paradise tinha se tornado um espaço vazio, uma espécie de terreno baldio monstruoso com alguns esqueletos de árvores onde antes havia uma cidadezinha em meio a uma floresta de coníferas.
Naquele primeiro dia em Paradise, me dei conta das casas que não estavam mais lá por causa das caixas de correio, novinhas, recém instaladas; as pessoas ainda precisavam de um endereço. E as caixas tinham derretido, como todo o resto. Antes de você estar perto de um desastre, você não pensa em geladeiras que derretem e simplesmente somem, contaminando o solo com metais pesados, e com isso todo o abastacimento de água. Você não pensa em um porta-retrato descendo a correnteza do Caí e indo parar no Guaíba.
5.
No terreno queimado do ex-escritório de Lorraine, em tudo parecido com o da casa dela porque qualquer marca de identificação foi absorvida pelas chamas, encontramos umas pedras esquisitas na terra revolvida. São lisinhas, brilhantes, pretas, feitas pelo fogo. O fogo inventou uma pedra semi-preciosa. “Pode pegar se quiser”, ela diz, e eu escolho uma do tamanho da minha mão, depois ando em silêncio com aquilo de volta para o carro. Não é especialmente bonita, mas tenho a pedra até hoje na minha sala. Nunca parei para pensar no que isso significa.
6.
Descendo de uma linhagem de acumuladores. Meus pais acumularam meu passado. Vivi adolescente num quarto de criança, e a única coisa ali que correspondia à minha idade do momento era um pôster da Courtney Love que eu tinha heroicamente conseguido numa loja de discos. Nada podia sair daquele apartamento. As coisas eram como eram, e assim tinham que ficar. Para sempre.
Quer dizer, até agora. Minha mãe morreu, e será preciso lidar com as coisas, as milhares de coisas. Mas isso é outra história.
Quando você vai ficando mais velha, começa a perceber que escolhe suas batalhas – ou é escolhida por elas. Infelizmente, não dá pra abraçar o mundo. Você também percebe que há certos ângulos, certos detalhes que o mobilizam bastante, e outros menos. De novo: a existência é muito enorme para que você consiga abarcar tudo, refletir sobre tudo, se envolver com tudo. Para mim, a cultura material, que é um termo horroroso para falar das coisas que amamos, é uma delas. Quando escrevi sobre o incêndio que destruiu Paradise, falei sobre as causas do desastre, o manejo ruim das florestas, o aumento expressivo desses fenômenos devido às mudanças climáticas. Mas falei sobretudo dos poemas que Lorraine perdeu no fogo, escritos pelo falecido marido, falei sobre o violão que ela conseguiu salvar.
7.
A ideia de casa pode estar nas fundações e paredes de uma edificação, mas está sobretudo nas coisas que colocamos dentro dela. Segundo a antropóloga Alison J. Clarke, uma casa é menos um lugar do que um processo, onde trajetórias passsadas e futuras são arranjadas através da fantasia e da ação, da projeção e da interiorização.
Moldamos uma casa enquanto somos moldados por ela. Nossas coisas representam o que somos, o que acreditamos que somos, o que queremos ser.
8.
Difícil chegar a qualquer tipo de apaziguamento entre a importância que damos à cultura material e a sistemática destruição que nossa cultura material causa ao planeta. Talvez a resposta – uma das muitas respostas de que vamos precisar – esteja em um trecho de um romance que traduzi recentemente, The overstory, do Richard Powers (a ser lançado no início de 2025 pela Todavia). No trecho em questão, a personagem Patricia Westerford, uma professora de botânica, diz: “Minha simples regra de ouro é essa: quando você corta uma árvore, o que você faz dela deve ser pelo menos tão milagroso quanto aquilo que você cortou.”
Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la. Dá um trabalho danado escrever. Colaboradores tem acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura mensal que acontece via Zoom, às 19h. Assinantes pagos também recebem uma edição mensal que acompanhará o processo criativo do meu próximo romance. A edição de maio sai nessa sexta-feira, dia 31.
O café La Cabane, sobre o qual eu falei na edição #29, foi alagado, como muitos pequenos negócios de Porto Alegre. Ao longo do mais longo dos meses, a gente foi descobrindo lugares queridos debaixo d’água. A Livraria Taverna. A sede da TAG. O Agulha. A lista não tem fim.
Segue abaixo o calendário do Clube Nevoeiro. Sempre envio o link do Zoom na véspera do encontro. Já escolhi os livros até o fim do ano, mas vou manter o mistério por mais algum tempo.
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8 – Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
uma casa nunca é só uma casa, é todo um projeto, uma identidade, um porto-seguro, uma referência a nortear a existência da gente, mesmo para quem - como eu - não acumula nada ou muito pouco.
fiquei sem palavras, mas cheia de sentimentos. agradeço, carol :-) <3