1.
Quando minha mãe morreu, no dia 31 de janeiro, depois de um declínio físico e psíquico de anos, aconteceu uma coisa esquisita, para além das dores do luto e do vazio óbvio: a passagem pareceu ter liberado em mim o acesso a outras Danieles, Danieles do passado que tinham sido solapadas pela Daniele dos anos recentes –uma mulher tomada por medos e sofrimentos de todo o tipo, e cujos mecanismos mentais a enfiaram num túnel escuro que ninguém conseguia acessar. Como não acredito em uma existência além morte, mas simpatizo mesmo assim com o termo passagem, gosto de pensar que a passagem de um ser humano é uma espécie de mudança narrativa: o tempo mais recente se dilui com o que já é remoto; acaba-se a hierarquia temporal, e a menininha de dez anos escrevendo no caderno da escola é um tão importante pedaço do mosaico quanto a mulher de setenta na cama do hospital. O filósofo Paul Ricœur defende que toda a identidade é narrativa. E eu diria que essa identidade-narrativa tem tantos narradores quanto foram os encontros na vida. E mais: que ela não acaba na morte; explode em mil fragmentos que os vivos tentam juntar.
2.
Essa sensação é amplificada pelos encontros que acontecem logo depois da morte. Três primos da minha mãe chegam juntos ao cemitério. Sei tão pouco sobre eles, mas sei que carregam consigo uma Daniele que eu nunca vi. Aos meus olhos, isso dá a eles um poder magnético, e também faz com que eu sinta um enorme carinho pelo trio. Na semana anterior, vi os primos em uma meia dúzia de fotos esverdeadas de 1974, criancinhas com cabelos armados e camisas estilosas sentados sobre a leoa de pedra da praça Maurício Cardoso, um fusca branco atrás, uma, duas casas que ainda estavam de pé naquela época. No cemitério, alguém pede voluntários para levar o caixão. Os três primos agarram as alças metálicas, e eu sei que já vi essa cena antes, o caixão da minha tia, o caixão do meu avô, talvez ambos. Queria que os primos estivessem em outras cenas, que as mãos se ocupassem de outras coisas. São os pensamentos que temos em um funeral. Por que tanto tempo sem se encontrar? O que diz essa tatuagem em árabe na nuca do irmão do meio?
3.
Sempre que eu vou a Porto Alegre, minha agenda não se parece em nada com a agenda de uma introvertida que gosta de ler numa cadeira de balanço ou fazer uma trilha com a namorada no meio da floresta. São almoços, cafés, jantares com um sem número de amigos, uma coisa emendada na outra até que o excesso de estímulos visuais, sonoros, estomacais e cognitivos se acumule tanto que seja preciso urgentemente voltar para casa. E, dessa vez: a mãe no hospital, a perda da mãe. É nesse contexto que recebo uma mensagem de C., minha ex-professora de francês, e que conheceu muito bem minha mãe, e que ouviu minhas angústias amorosas de jovem adulta por anos, e que me encorajou a dar aula de francês, e que por isso foi fundamental na minha transição da publicidade para a literatura. Não nos vemos há dezoito anos, possivelmente. E eu com a agenda sempre cheia, perto de voltar para casa, e levando o luto comigo. E, no entanto, crio uma prioridade. Marco um café com C.
4.
Consigo ver essa força nova, uma espécie de empuxo que quer me levar às coisas e pessoas que deixei para trás. Não sei se entendo. Acho que não quero perder a mãe, a mãe-narrativa que eu ainda tenho, a mãe que eu guardo comigo, a mãe que eu posso agora remontar em uma luz mais bonita. Quero saber das lembranças dos outros. E nada me parece tão melancólico, dias depois, quanto um churrasco com pessoas que a conheceram de tão perto e que, no entanto, talvez por quererem me poupar – como se isso sequer fosse possível – não a mencionam uma única vez durante toda a noite.
5.
O café onde encontro C. parece uma casinha de vovó, poltronas, bordados, a dona é velha conhecida de C., tudo conspira para uma sensação de acolhimento. Conversamos durante algumas horas, e é como abrir as gavetas da grande acumulação, às vezes você puxa uma conta de luz de 1992, outras vezes encontra um cartão de aniversário que te faz chorar. Na hora de ir embora, caminho até o outro cômodo da casa-café para tirar uma foto panorâmica do lugar. É então que, sobre a abertura que leva para a sala onde passamos a tarde, vejo a seguinte frase: vim te ver pra lembrar quem sou.
6.
Vim te ver pra lembrar quem sou. O corpo dá uma vibrada dos pés à cabeça, e o cenário se congela por um instante, aqueles segundos meio majestosos e embasbacantes de quando as coisinhas do universo se encaixam de repente. Ou, ao menos, quando as coisinhas do universo se encaixam em uma narrativa. Nesse instante, o “eu” também se torna “ela”, e parece fazer pouco sentido criar uma distinção entre presente e passado. Quem sou, quem fui, quem ela é.
7.
As ruminações vão continuar por um tempo, ou talvez para sempre, tenho um romance que abre com a frase “Ele queria entender tanta coisa”, e esse/essa sou eu, a versão funcional, diluída, de uma mente obsessiva. Mas nunca vou entender minha mãe. Volto para casa, onde eu e Melissa estamos montando um cantinho do toca-discos na sala, e numa tarde saio para correr na trilha que margeia o rio, corri no calor porto-alegrense algumas vezes depois do funeral e consegui manter a calma ouvindo Depeche Mode, mas hoje a floresta e as memórias interrompem a corrida e me fazem voltar pro carro soluçando, é como se aqueles dias em Porto Alegre fossem um estado temporário, uma vida que não era (mais) minha, as burocracias da morte, a compra dos discos brasileiros para trazer até o norte da Califórnia, água de coco com meu pai na Orla, e agora de repente a constatação de que a situação é essa: cheguei, voltei pra minha casa no meio dos pinheiros, e minha mãe não vai mais me telefonar.
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Segue o cronograma de nossas próximas leituras. Em breve, vou adicionar os livros de setembro e outubro.
12/3 – Um homem só, Cristopher Isherwood
9/4 – O túnel, A. B. Yehoshua
9/5 – Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8: Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
O café que mencionei é esse aqui.
Penso que essas frases anônimas nos salvam muitas vezes, Carol. Assim como o seu texto, que traduziu muito do que sinto ao acompanhar a velhice dos meus pais em um luto antecipado e doído demais. Meus sentimentos pela sua perda. Abraços.
Ah, esses telefonemas quase diários, invasivos e sufocantes...hoje ainda estranho a ausência deles, depois de quase uma década da morte da minha mãe.
Minha solidariedade neste momento, sempre difícil.