1.
Não são as semanas mais fáceis da vida, então decido trocar o cheiro resinoso dos pinheiros – aquele que a amiga nova iorquina gostaria de levar numa garrafa – pela bagunça de verão de uma das maiores cidades do mundo. A decisão acontece de um jeito que um dia vai soar engraçado: em um restaurante mexicano nos confins da Califórnia, momentos antes da garçonete aparecer cantando parabéns para uma mesa ocupada por dois casais; ela carrega um sombrero de mariachi e tenta colocá-lo na cabeça do aniversariante, mas ele dá um golpe violento no chapéu, quase acertando minha amiga, e sai do restaurante em um acesso de fúria. A esposa ri de nervosa. Eu me pergunto que tipo de casamento é esse. Digito os dados do meu cartão no celular e compro uma passagem para Nova York, morrendo de medo. É patético dizer isso em voz alta, ou melhor, escrever isso, mas passei os últimos sete anos da minha vida com a certeza de que tinha conquistado um invejável equilíbrio emocional e uma felicidade palpável. A parte mais patética disso é que achei que esse estado se prolongaria no tempo, de que o tudo muda o tempo todo do budismo se tratava apenas de micro ajustes que manteriam um bem-estar duradouro. Esqueci como era não ter o menor controle sobre os acontecimentos e sobre minha própria cabeça.
2.
Desejo por aventura, desejo por lar. As pessoas tentam equilibrar essas duas vontades desde que a humanidade soltou algumas de suas amarras sociais. Aventura é o desconhecido, a surpresa, a conquista. Lar é conforto, paz, acolhimento. No fundo, acho que todos os meus livros falam sobre pessoas que tentam tecer uma existência que contemple tanto a ideia de aventura quanto a ideia de casa (enquanto lidam com um pai assassino, enquanto aprendem a plantar maconha).
3.
Quando eu era criança, quase nunca dormia na casa das amigas. Certo dia, eu e mais umas três meninas fomos na casa da Lisiane fazer um trabalho em grupo para a aula de ciências. Uma maquete do sistema solar. Plutão ainda era um planeta. O plano era dormir lá, mas lembro que todas as minhas amigas foram cedo para a cama, mais cedo do que eu normalmente ia, de modo que não consegui pegar no sono. A história terminou com os pais da Lisiane atravessando a cidade para me levar para casa. A casa me puxou de volta muitas outras vezes. Nenhuma cama é a cama de casa.
4.
Meu relógio marca meu tempo de sono e divide-o em etapas. Os tempos andam meio péssimos – eu, que nunca tive problema para dormir –, e meu sono profundo tem sido insuficiente. Talvez por isso eu sinta um certo nevoeiro dentro da cabeça durante o dia. Nunca tomei remédio para dormir e, a princípio, sou convenientemente contra. Recorro às vezes a gotinhas de maconha. Quando você tem uma crise em alguma área da sua vida, como evitar que todo o castelo de cartas vá abaixo? Já não sou escritora, já não sou tradutora. Minha identidade vira um borrão confuso. Diz a narradora do Diorama: “A tentação de fazer merda quando as coisas parecem estar desmoronando”. Minha analista acaba de ler A cidade e a casa, da Natalia Ginzburg, e me conta como tudo começa a dar errado na vida de um grupo de amigos quando um deles se afasta ao se mudar para os Estados Unidos. A verdade é que as coisas sempre se conectam de um jeito frágil, com barbante e cola branca. O rompimento da paz, da casa, pode ter se dado com a morte do Mitchell e a doença da Sharon. Um plano ético-estético que chegou ao fim porque não resistiu à obviedade de que sim, um dia todos morrem?
5.
Você quer achar uma explicação. Um big bang para chamar de seu.
6.
Em Nova York, entro em uma livraria e compro um romance italiano, um ganhador do Pulitzer e um livro sobre bissexualidade. Esse último se chama Bi: the hidden culture, history and science of bissexuality. A capa traz dois círculos que se interseccionam, e a autora se chama Julia Shaw, uma psicóloga criminalista (gata demais, aliás). Começo a ler sobre bis como se fosse descortinar um enigma. Já estive mais preocupada com questões de identidade sexual do que estou nos últimos tempos, agora me interesso mais por simplesmente viver. Deve ser a idade. Em 2014, escrevi um ensaio para o jornal Zero Hora chamado “A revolução da bissexualidade”, eu tinha lido um monte de livros sobre o assunto e parecia ávida para me entender e me afirmar e, além disso, havia lançado Todos nós adorávamos caubóis no ano anterior. Capa do caderno de cultura, o texto era ilustrado por uma tomada e um adaptador em formato de coração. Também na capa, destacaram uma frase do ensaio: “Há algo acontecendo, e não só porque Kate Perry cantou que tinha beijado uma garota e gostado disso, nem porque uma parcela considerável das adolescentes está agarrando amigas com tanta naturalidade.” Com nosso olhar de quem atravessou os anos Bolsonaro e ainda vive num país dividido, parece agora uma coisa ousada para ter saído em um jornal conservador.
7.
Um trecho do ensaio que escrevi em 2014: “As palavras de Ochs apontam para uma característica intrínseca à bissexualidade, característica esta que está no cerne da descrença em relação a sua própria existência: a bissexualidade dificilmente se apresenta como algo perceptível no instante presente. Com isso quero dizer que, se você encontrar minha amiga Alice de mãos dadas com outra mulher, vai depreender que ela é lésbica. Se encontrá-la com um homem, concluirá que é hétero. A identidade bi, portanto, só se constrói a partir de uma narrativa; é preciso conhecer o histórico das relações afetivas de Alice, bem como suas disposições e desejos em relação a ambos os gêneros, para que se tenha a real dimensão de sua sexualidade.”
8.
Não sei quem era minha amiga Alice nem todas as outras citadas com pseudônimos. Nem me lembrava que conhecia tantas mulheres bissexuais. Onde elas estão agora? Será que foram vítimas da invisibilidade bi?
9.
Uma amiga lésbica diz no telefone que não gosta de bis. Na hora não consigo reagir, mas fico pensando nisso por semanas a fio, profundamente incomodada.
10.
O livro de Shaw me faz querer sair sacudindo uma bandeira rosa, lilás e azul. “Assim como nos relatos históricos”, escreve Shaw, “as pessoas também tendem a depreender que os personagens bissexuais na tela estão em negação ou em transição para se tornarem quem realmente são – homossexuais. Isso reflete crenças comuns sobre a bissexualidade ser uma fase, ou não existir de verdade. Também não ajuda o fato de que os filmes com personagens bissexuais quase nunca usam a palavra bissexual, de maneira que a identidade fica aberta à interpretação. De acordo com Bryant, a bissexualidade ‘tornou-se a sexualidade que não ousa dizer seu nome’”.
11.
Lembro de como foi reconfortante descobrir sobre a Escala Kinsey quando eu ainda estava no colégio. Nem sei como isso aconteceu em um período histórico pré-Google. Foi uma maneira de me enxergar em algum lugar, de criar uma narrativa sobre mim mesma. Em Nova York, falo com a amiga que me hospeda sobre psicanálise, astrologia, ciência e sobre as narrativas que criamos. De novo, olhando para o rio, eu penso que deveria deixar algum espaço na minha vida para o mágico, para o inexplicável. Nem tudo precisa ser explicado. Mas, como a impermanência budista, essa provavelmente é uma lição que eu vou esquecer.
Leitoras e leitores: deixem seu like, seu comentário, e considerem apoiar essa newsletter por R$10 mensais. Colaboradores têm acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura que acontece via Zoom, sempre às 19h. Aqui estão nossas próximas leituras:
8/8 – Notas de um filho nativo, de James Baldwin
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
05/22 – Vencedor da votação entre quatro romances brasileiros contemporâneos*
* a ser definido em setembro
Acabo de abrir inscrições para meu curso online de narrativas longas, As engrenagens do romance. Você pode se inscrever e encontrar mais informações aqui. Acho que os títulos das aulas dão uma boa ideia do que veremos:
1. Contraindo ou expandindo o tempo
2. Desobedecendo a cronologia a seu favor
3. Personagens em ação
4. Os muitos narradores possíveis
5. A utilidade dos detalhes inúteis
6. Os diálogos e o design da cena
7. Construindo atmosferas
8. O romance: ideias brutas e primeiras decisões
9. O romance: erguendo as fundações
10. O romance: construindo os cômodos
11. Outras formas de narrar e o design da frase
12. Últimos conselhos e o fim
“A identidade bi só se constrói através de uma narrativa”
Afffff! Lindo isso! <3
Adoro os textos da versão existencialista da Carol