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1.
Em uma cena do meu livro mais recente, Diorama, Cecília mostra a Jesse um coiote empalhado. Cecília é taxidermista. Jesse é um músico cabeludo, venera o rock sessentista e está atrás de um coiote para usar como objeto de cena na sua turnê. É a primeira vez que eles se encontram, por acaso. Jesse encara o coiote, fascinado. “É tão vivo”, diz. Cecília não responde, mas gosto de imaginar que esse é o momento-chave, a faísca inicial de uma relação que vai acabar em casamento, embora eu não tenha escrito nada disso na página. O que escrevi na página foi: “Olhando para seus olhos de vidro, Jesse havia escolhido, entre a vida e a morte, perceber a vida.”
Quero fazer como Jesse. Quero ser essa coisa bonita que Cecília viu em Jesse. Por ora, escolho perceber a vida.
2.
Setembro de 2015. Aluguei uma cabana no norte da Califórnia num lugar chamado Point Arena, condado de Mendocino. Por coincidência, pertencia a um casal de escritores com os quais jantei algumas vezes (na maior parte do tempo, ficavam em San Francisco, onde tinham empregos normais em uma escola de escrita criativa). Contei que estava ali para escrever um romance cujo pano de fundo era o cultivo de maconha na região. Me disseram que o pior livro do fenomenal Denis Johnson se passava em Mendocino (Already dead). Me disseram que o pior livro do venerado Thomas Pynchon se passava em Mendocino (Vineland). Minha cabana tinha uma aparência estranha, pé direito alto e um anexo em forma de cubo revestido de placas metálicas, porta de celeiro que não trancava por dentro, móveis que pareciam descartes de outras casas. Ficava a vários quilômetros da cidadezinha de 450 habitantes. Se o carro estragasse – como um dia aconteceu –, não havia como chegar em qualquer lugar.
Eu não estava no melhor momento da minha vida pessoal naquela época. A solução? Pegar um avião e me enfiar num buraco da Califórnia para escrever um livro. Lembro da minha analista lançando a pergunta: por que, num momento de tanta fragilidade emocional, eu tinha decidido ficar totalmente sozinha num lugar estranho? Não sei. Claro que a coisa não deu muito certo. Um dia tive um ataque de pânico e dirigi para a emergência do hospital. Era o mesmo hospital onde Mitchell morreria no futuro brumoso, dia 5 de junho de 2023. Mas eu disse que não ia falar de morte.
3.
É difícil fazer essa história caber aqui pela grandeza dela, pelo poder transformador que nem eu entendo e quero muito entender. Sharon e Mitchell também tinham uma cabana disponível no Airbnb, e foi pra lá que me mudei depois de deixar a lúgubre Point Arena pra trás. O entorno era solar, cheio de vida, com uma sequoia-vermelha bem do lado da casa, cujo topo não se podia enxergar nem se você colasse a testa na janela. Mitchell fez oitenta naquela ano, Sharon tinha uns dez a menos. Voltei em 2016, com a Melissa. Voltamos em 2018, de mala, cuia e greencard. A mesma cabana. Naquela altura, já tínhamos consolidado nossa improvável amizade intergeracional, entrando em um restrito círculo de meia dúzia de amigos, todos em vias de ultrapassar, ou tendo já ultrapassado, a marca dos oitenta anos. T. foi dublê em Hollywood e tinha lutado com um urso de circo. M. criou um kit construa-seu-domo-geodésico, que vendeu por alguns meses através de anúncios na revista Whole Earth Catalog. L. trouxe maconha do México dentro de ursos de pelúcia em um ônibus escolar. E todos eles tinham se conhecido no início dos anos 70 no lugar que chamavam de Chicket Shit Community, o galinheiro de um velho austríaco com um tapa-olho que gostava de oferecer um teto a jovens hippies recém chegados na região.
4.
Eles nos davam essas histórias. Nós dávamos a eles nossa juventude.
5.
Mitchell e Sharon nunca tiveram filhos.
6.
Essa é a interpretação fácil e equivocada: fomos filhas para eles, eles foram nossos pais americanos. Não. Totalmente errado. Foi, isso sim, uma relação de espelhamento. Dois casais sem filhos, great generation de um lado, millenials-pendendo-pra-geração-x de outro. Um escritor (não publicado), uma escritora (vivendo disso). Um projeto de vida meio contracultural com cinquenta anos de intervalo. Um exemplo de trajetória, afetos, escolhas, fidelidade aos seus valores. O brilho emprestado de alguém que ainda tem um futuro pela frente.
7.
O problema de escrever sobre coisas imensas é que elas se tornam pequenas. É como fotografar uma montanha, um paredão de pedra monstruoso, uma sequoia-vermelha. Nunca dá a dimensão. Melhor voltar a falar sobre coisas pequenas. As coisas pequenas podem se tornar imensas quando escrevemos sobre elas.
8.
Todos esses anos de amizade e acho que tenho uma única foto da Sharon e do Mitchell. Não gostavam de tirar fotos, ou ao menos não nos últimos tempos. Mas Mitchell está aqui, pintado no quadro na parede da minha sala (minha?). O homem segurando a cumbuca de cereal.
O quadro acima é de Dean MacKenzie.
Falei sobre a Sharon – o começo desse luto – na Nevoeiro #6.
Segue aqui nosso calendário de leituras do Clube Nevoeiro (o livro de dezembro continua surpresa):
5/7 – Alvo Noturno, de Ricardo Piglia
8/8 – Notas de um filho nativo, de James Baldwin
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
Muito linda essa amizade de vcs. Por mais afetos entre pessoas de diferentes gerações que não sejam necessariamente parentes.
Que coisa mais linda, isso de tornar as coisas imensas pequenas no papel, e as coisas pequenas, imensas!
Obrigada por mais um lindo texto, Carol!