Nevoeiro#3
O poder curativo das caminhadas; traduzindo Alison Bechdel; o que era sólido desmancha no ar
1.
Engato dias e dias sentada diante do computador traduzindo. Tentando deixar pra lá a culpa que já adivinho – o mundo exige produtividade constante, não vá desperdiçar suas horas (diz) –, tiro uma tarde pra ir ao parque estadual Van Damme. Fica a cinco minutos de casa. Estaciono o carro na fronteira entre a praia e a floresta, essa última um cânion úmido de pinheiros, ciprestes e samambaias que acompanha um córrego não muito originalmente chamado Little River. Deixo o carro carregando e só paro na entrada do parque porque uma placa anuncia vagas de emprego abertas; de novo brinco na cabeça com a ideia de ser guarda-florestal, um trabalho de quatro horas diárias na minha fantasia, que posso conjugar com a escrita e ainda por cima ganhar em dólar; vou poder ficar ao ar livre e serei espiritualmente curada pela floresta; mas logo a realidade me chama de volta. Que habilidades eu tenho para ser guarda-florestal?
2.
Uma árvore caiu no meio da trilha. Deve ter acontecido durante as últimas chuvas. Se eu fosse uma guarda-florestal, teria que usar uma motosserra para fatiá-la e tirá-la do caminho? A ideia é absurda. Tenho medo até de faca de cozinha. Não sei o quanto podemos mudar ao longo de uma vida.
Passo por cima da árvore. Meus tênis estão deliciosamente embarrados. Ainda não cruzei com nenhum ser humano.
3.
O córrego faz um barulho de gargarejo. Às vezes parece um rádio mal sintonizado. Exceto por esse, não há muitos ruídos aqui. São florestas silenciosas, quase sem pássaros. Há possibilidade de ursos e pumas, mas nunca encontrei nenhum deles.
Sempre caminhei na cidade. Gosto de sentir que as pernas me levam, e reparo nas pessoas, nas casas, adoro espiar as janelas quando já estão acesas, imaginar a vida de quem mora ali, houve uma época em que eu caminhava com meus pais, um ritual nosso, tínhamos os prédios favoritos do bairro, mas agora minha mãe não sai mais de casa.
Caminhar na natureza é um pouco diferente. A floresta temperada não joga para você uma explosão de estímulos, ela no máximo sussurra como o córrego. A mente então trabalha num certo minimalismo. Sei que aqui eu poderia sacar uma sabedoria budista se eu tivesse alguma, e talvez eu deva mesmo ter esse plano para 2023, ler sobre budismo, enxergar como um sinal o fato de que dois dos poucos livros que traduzi nos últimos anos tocavam descaradamente em ideias do budismo. Também faria eu me sentir menos ridícula morando em uma casa com bandeirinhas budistas. Eu cheguei, elas já estavam lá.
Você não deve mexer numa coisa dessas.
4.
O livro que estou traduzindo é a mais recente graphic novel da Alison Bechdel, uma autora de quem eu já era fã antes de ser convidada a traduzi-la. Fiz o Perigosas Sapatas no ano passado e foi uma experiência maravilhosa, mas esse The Secret to Superhuman Strength me tocou de um jeito transcendental – uma palavra adequada para falar desse livro. Nele, Bechdel vai de novo chafurdar na própria vida, como em Fun Home e Você é minha mãe?, mas agora a narrativa é carregada pela relação da autora com o exercício físico. O estilo é aquele de sempre, um livro de memórias com fortes notas ensaísticas, que encaixa referências num fluxo magistralmente bem montado. As referências aqui são os filósofos transcendentalistas, o budismo, Adrienne Rich e Jack Kerouac.
E a busca pela tal força sobre-humana, é claro, vai muito além do corpo; é na verdade uma busca por espiritualidade, harmonia com a natureza e, em última análise, aceitação de nossa condição mortal.
Enfim, o que quero dizer é que tem sido intenso traduzir esse livro porque, pessoalmente, todas essas questões me atingem em cheio, o que me leva a inevitáveis aproximações na concretude dos fatos, como se fosse fácil traçar similaridades entre a minha atual jornada e a vida de Bechdel: ela escolheu morar numa casa no meio da floresta em Vermont, e eu escolhi morar no meio da floresta na Califórnia; ela se sente realizada caminhando na natureza, em um nível que é fisico, mas também espiritual; essa relação com o ambiente está entranhada em seu processo criativo, e frequentemente um cenário natural gera insights importantes para o seu trabalho; na moda, ela encontra sua identidade de gênero nas roupas feitas para um estilo de vida outdoor – produzidas por marcas como L. L. Bean e Patagonia –, o que também aconteceu comigo, uma paz estética que eu nunca tinha sentido antes em outro lugar; como Bechdel, também uso o mesmo casaco praticamente todos os dias do ano.
5.
Quando me mudei pra cá, há quatro anos, uma das coisas que mais me fascinava na natureza circundante era a ideia de permanência. Somos pequenos, eu pensava, vamos passar, mas essas falésias e essas florestas vão continuar aqui. O pensamento, percebo agora, era um tanto ingênuo. Tudo isso está em constante transformação, ainda que em uma escala de tempo que não se compara ao da nossa vida individual.
As falésias estão mudando, a rocha vai sendo moldada pelo mar e pelo vento. As florestas não são as mesmas de cem anos atrás, quando o extrativismo as dizimou, e muito menos as mesmas de antes da chegada do homem branco com suas serras e mulas e ferrovias. Levará séculos para estarem maduras daquele jeito. E, com o aquecimento global, é bem improvável que tenham esse tempo.
Mas o conforto da permanência é profundamente traiçoeiro. Acho que entendo isso melhor agora. O segredo da força sobre-humana, no fim das contas, é aceitar as mudanças.
Meu livro favorito sobre caminhar chama-se Wanderlust (A História do Caminhar, na tradução), da maravilhosa Rebecca Solnit. Recentemente, a Fósforo lançou esse Flâneuse, de Lauren Elkin. Se você tem uma recomendação de livro sobre o tema, deixe nos comentários.
Essa é a última semana para se inscrever no meu curso online, As engrenagens do romance. São doze aulas compostas de vídeos, material teórico, trechos de romance e exercícios de escrita. É conteúdo à beça, e ainda há três encontros ao vivo para trocarmos uma ideia e tirarmos dúvidas. O curso fica disponível por um ano e você pode ir fazendo no seu ritmo. Se quiser dar uma olhada na ementa, coloquei nesse post.
No dia 24, estarei na mesa da Flip chamada “A literatura em que habito”, junto com as autoras Bessora e Prisca Agustoni. A mediação será da Noemi Jaffe. Dá pra espiar a programação oficial completa aqui.
No dia 26, também em Paraty, devo participar de um bate-papo e sessão de autógrafos na Livraria das Marés. Informação ainda extra-oficial, mas pode anotar na agenda.
No dia 29, no Rio de Janeiro, lanço o Diorama na Livraria Travessa de Ipanema. Divulgarei mais detalhes no Instagram assim que eu puder.
Existe um livro que, como arquiteta, tenho usado como base de estudos desde meus trabalhos acadêmicos. Um pouco técnico e um pouco poético. Walkscapes, o caminhar como prática estética, do italiano Francesco Careri. Desde o início (?) do caminhar humano. Gosto muito!
"Andar a pé", de Henry David Thoureau.