Nevoeiro #55 – Um estudo sobre o som e o silêncio
Expedição noturna; primavera silenciosa; o que os pássaros fazem por você
1.
Me junto a uma expedição para procurar corujas no entardecer. O ponto de encontro é um estacionamento de terra entre a autoestrada e a costa escarpada de Elk (208 habitantes, um armazém, um restaurante com uma estrela Michelin). Estou com a Melissa e uma amiga com quem faço uns programas esquisitos, como ir assistir a uma performance de um violonista virtuoso na sala de estar de gente estranha, que colocou uma menina com deficiência mental para vender bebida álcoolica na cozinha; no fim da noite, o pai dela vai cair da escada, levantar bambeando, não aceitar a ajuda de ninguém.
Somos umas doze pessoas que acharam que era uma boa observar corujas numa sexta-feira à noite. Não conhecemos os motivos que nos levaram a isso, as vidas uns dos outros. A mulher que veio sozinha e que parece vestida para jantar na cidade grande me deixa intrigada.
Descubro, obviamente, que não vamos ver as corujas, mas sim tentar ouvi-las, porque a luz está esmorecendo rápido e porque um livro me ensinou que essas aves voam de maneira silenciosa, um segredo anatômico que, desde o início das civilizações, ajudou a tornar a coruja um animal mítico, misterioso, símbolo de tantas coisas boas e más. Nosso guia se desloca pelo mato com uma JBL no pescoço e, durante a noite comprida e fria, vamos parar em pontos estratégicos e tentar atrair as corujas com gravações de chamados que me deixam eticamente desconfortável, mas decido lidar com isso porque é o único jeito. Estar no meio de uma floresta densa no escuro quase completo, tentando captar o mínimo ruído de vida animal, me coloca num estado de hiper atenção interessante; na falta da visão, não são só meus ouvidos que parecem mais aguçados, mas também o olfato. Sinto intensamente o cheiro da casca das sequoias e dos abetos, a serrapilheira úmida, o mofo e as bactérias que colonizaram o casaco de uma senhora.
2.
A sensação no fim é de fracasso. A floresta é mais silenciosa do que gostaríamos. O ponto alto da noite são duas grandes-corujas-de-chifre* emitindo aquele som grave e compassado em algum lugar do vasto e distante paredão de pinheiros. Elas ainda estão lá. Essa é a frase que repito para mim mesma naquela noite e em tantas outras ocasiões em que vejo qualquer traço mínimo de um animal que passou há pouco, que está ali em algum lugar, que ainda resiste. Toda a vida que sobreviveu a nós merece ser reverenciada.
3.
* Desculpa, tive que inventar esse nome popular. A tradução de great horned owl é na verdade coruja-orelhuda, um fato que não aceito bem até hoje; me parece uma ofensa ao ar de nobreza irretocável da espécie.
4.
Minha missão é manter você interessado em corujas. Pássaros, aves em geral. Cinco minutos atrás, eu quase caí na tentação de falar de outra coisa para manter o interesse – uma fofoquinha, algo que se conecte ao cotidiano, pensei –, felizmente me dando conta há tempo de que é sobre as aves que quero continuar falando porque todo o problema é justamente não percebê-las e deixar que elas desapareçam, ou então só se dar conta de que elas existem por causa de algum incômodo – o sabiá-laranjeira cantando às quatro da manhã (e acordando você) porque precisa se comunicar com seus iguais antes que o barulho do trânsito das cidades torne essa comunicação impossível.
5.
Muitos anos atrás, eu quis escrever um romance que falasse sobre a ideia de espécie invasora. Entendo o conceito, mas acho que sou amadora o suficiente na área da ecologia para ter o direito de não ter certezas. Bom, em primeiro lugar, a espécie nunca invade porque ficou a fim. O dominó do desequilíbrio sempre começa no homem. Alguém um dia achou bonito aquele penachos de capim-dos-pampas, colocou umas sementes na mala, e e agora ele cresce descontroladamente nas áreas selvagens do norte da Califórnia. O homem dizimou a população norte-americana de pumas e, sem inimigos naturais, os veados proliferaram. E aí vem esse mesmo homem tentar arrumar a bagunça, e frequentemente enxergar fronteiras onde as fronteiras não existem mais (bastou um esporo de fungo vindo da Ásia num carregamento de madeira para dizimar em cinquenta anos todas as castanheiras existentes nos Estados Unidos).
6.
O ser humano também curte brincar de seleção natural, como ilustra a historinha que vou contar agora – e sinceramente não consigo ter uma opinião definitiva sobre isso. Existe uma coruja chamada coruja-malhada (Strix occidentalis) que está associada às florestas de sequoia-vermelha. Com a perda do habitat – hoje há apenas 3% da floresta original –, a spotted owl virou uma espécie ameaçada e legalmente protegida. Nas últimas décadas, de algum jeito maluco, outra espécie de coruja, a coruja-barrada (Strix varia), atravessou as Montanhas Rochosas, chegou no Noroeste do Pacífico e começou a tocar o terror nas delicadinhas corujas-malhadas. A Strix varia é maior, mais agressiva e – possivelmente o Darwin diria isso – mais adaptável. Ah, e ela tem mais filhotes do que sua concorrente. Francamente em desvantagem, a coruja-malhada começou a cantar menos, para não entregar sua localização à coruja-barrada, e a situação obviamente só ficou pior. Para tentar salvar as corujas-malhadas, o governo lançou um plano radical: o extermínio das intrusas, as Strix varia. Mas será que é certo matar uma espécie de coruja para salvar outra? Dilema horroroso.
7.
Eu estou escrevendo sobre pássaros hoje porque passei as férias na França e só ouvi o céu em seu silêncio azulado perturbador. Eu quis acreditar que essa era uma condição deplorável estritamente parisiense, mas então fui para o sul, estava dormindo em uma pequena cidade vizinha a um parque nacional, e mesmo assim o dia nasceu com os arrulhos de pombos e só. Eu comecei a me sentir mal a cada vez que ouvia esses arrulhos – e me lembrei obviamente da Praça do Diamante, leiam esse romance –, e a partir daí ficou difícil pensar no meu mantra elas ainda estão aqui não porque eu odeie as pombas, mas porque aquele som me lembrava menos da presença delas do que da falta de outros pássaros. O arrulho era uma falta.
Primavera silenciosa, eu pensava andando por aquelas paisagens, que é o título de um livro do início dos anos sessenta escrito por Rachel Carson que foi uma virada de página para o movimento ambientalista, e então eu dei um Google quando cheguei no hotel por que a França tem tão poucos pássaros?, e o Google me respondeu que houve um declínio alarmante de 30% de pássaros no país nos últimos 30 anos devido principalmente ao uso de agrotóxicos, que era o que Carson, veja só, já dizia em 1962.
8.
Ontem joguei tênis com uma amiga. Um dia de sol. Entre os ruídos secos da bolinha, a gente ouvia pássaros cantando. Ela disse que ouvir o canto dos pássaros era bom para nossa saúde mental, que tinha lido sobre isso, que havia uma explicação, alguma coisa ancestral, sei lá.
Perdi o primeiro set no tiebrake e o segundo de lavada e fui procurar a tal explicação. “Muitos especialistas acreditam que o canto dos pássaros sinaliza segurança”, diz uma matéria da National Geographic. “Imagine se sentir tenso ao caminhar por uma floresta estranhamente silenciosa: ‘Você percebe que todos os pássaros pararam de cantar", explica Francis [Clinton Francis, pesquisador de ecologia aviária e evolutiva]. ‘Isso é um sinal de que pode haver um predador ou outra fonte de perigo por perto. Portanto, pode ser que o canto dos pássaros, ao longo da nossa história, tenha sido um sinal confiável de que o mundo está tranquilo e podemos relaxar."
Ops.
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Para quem gosta de pássaros e quer saber mais sobre, um bom caminho é começar pelos livros da Jennifer Ackerman, A inteligência das aves e o mais recente A sabedoria das corujas.
Listening to birds sing really does soothe your brain. Here’s why é o artigo da National Geographic que eu mencionei.
Programação do Clube Nevoeiro:
24 DE JUNHO, clube de leitura sobre A gosma rosa, Fernanda Trías – Um livro apocalíptico com sotaque uruguaio.
16 de JULHO, bate-papo com Gaía Passarelli – escritora, repórter e um dos grandes nomes do Substack no Brasil.
13 DE AGOSTO, clube de leitura sobre Austerlitz, W.G. Sebald – como é que eu ia deixar esse autor tão absurdamente incrível de fora?
SETEMBRO, bate-papo com Murilo Hauser – Murilo escreveu o roteiro de Ainda estou aqui, a sensação brasileira premiada com o Oscar, e também adaptou A vida invisível para as telas (Prêmio Un Certain Regard em Cannes).
14 DE OUTUBRO, clube de leitura sobre A trama das árvores, Richard Powers – tijolaço sobre vida, árvores, planeta em perigo. Um livro que não sai mais da cabeça de quem lê.
NOVEMBRO, bate-papo com Noemi Jaffe – autora de muitas obras (a última é o excelente Lili – novela de um luto), professora de escrita criativa e dona de um dos Substacks mais inventivos do Brasil.
DEZEMBRO – livro brasileiro que será publicado em agosto e que foi uma das minhas melhores leituras do ano.
Adorei que na mesma newsletter você falou sobre corujas e sobre jogar tênis, porque justamente o que eu tenho pra contar é sobre essas duas coisas juntas. Aqui na minha cidade tem um centro esportivo que tem três quadras de saibro, e no fundo das quadras tem um pequeno barranco de grama, e lá nesse barranco algumas corujas fizeram suas tocas, então sempre que você joga tênis no final da tarde, você tem corujas como espectadoras. E eu, no caso, sempre que termino o jogo converso com elas, não que elas entendam qualquer coisa ou se abalem com o que eu falo, mas pra mim é impossível vê-las e não querer conversar.
Uma coisa que amo em Berlim é ver a partida e a chegada dos pássaros nas diferentes estações. A dança, o grupo enorme se juntando e se exibindo (na minha concepção, claro) antes de dar um rasante conjunto e sumindo no horizonte. Tenho vídeos e vídeos desse balé.