1.
Eu lembro da fita VHS que M. emprestou para os meus avós. Eram os anos noventa e ele tinha voltado à Alexandria, Egito, a cidade que todos eles haviam sido obrigados a abandonar na década de 1950. M. ali quarenta anos depois com uma filmadora no ombro. Achou tudo irreconhecível, decadente, fez o registro, depois compartilhou com os amigos exilados. Minha vó assistiu a fita na salinha onde a gente jogava videogame (nosso jogo preferido era Choplifter, mas quanto remorso quando o helicóptero aterissava em cima dos reféns, meu deus, aquele barulhinho!).
Não sei exatamente o que minha vó sentiu ao ver a fita da sua cidade natal, mas sei que concordou com M.: Alexandria tal como tinham conhecido havia desaparecido para sempre.
2.
Nunca voltar para o lugar onde se cresceu. Essa obviamente é uma situação traumática, porque em geral se desenrola como consequência de uma política discriminatória, guerra, fome ou qualquer outra circunstância terrível. E, no entanto, gera também o efeito de proteger a memória da dura passagem do tempo; aqueles anos ficam ali, congelados sob uma redoma, e às vezes até parecem mais felizes do que realmente foram.
3.
Sempre voltar para o lugar onde se cresceu. Essa sou em Porto Alegre. Uma das coisas mais relaxantes que faço nessas visitas é assistir a documentários true crime deitada na cama, e acho que isso diz mais do que eu gostaria de dizer para as quase quatorze mil pessoas que estão recebendo esse texto, embora eu não saiba exatamente o que eu estou dizendo. Quero dizer, o significado disso. Mas sei que ele está aí, em algum lugar. Passo pelas mesmas esquinas. Algumas se transformaram, outras continuam iguais. E eu acho que nesses anos todos eu ressaltei mais a mudança do que a não-mudança: em uma edição antiga dessa newsletter, comentei que eu sempre tive essa coisa esquisita de escrever sobre certos lugares de Porto Alegre que, depois de um tempo, pah, eram varridos do mapa. Uma casa, um prédio, um bar flutuante. À primeira vista, parecia quase uma maldição como se, ao tentar eternizar aquelas coisas, eu estivesse, ao invés disso, condenando-as ao desaparecimento. Mas claro que não havia nada da ordem do inexplicável nessas “coincidências”. O que acontecia – e segue acontecendo – é que eu escolhia de propósito lugares que eram símbolos de algum tipo de resistência, imóveis que não se enquadravam na lógica urbana em curso, no apagamento inclemente, na especulação imobiliária rastaquera. Lugares, em resumo, que já estavam condenados antes que eu escrevesse a primeira linha sobre eles.
4.
Mas há mais coisas que continuam iguais do que coisas que desaparecem. Gosto muito desse trecho de Um guia para se perder da Rebecca Solnit, livro que lemos no Clube Nevoeiro:
(…)você não pode voltar no tempo, mas pode voltar aos cenários de um amor, de um crime, da felicidade, de uma decisão fatal; os lugares são o que sobra, são o que você pode possuir, são a parte imortal. Eles se tornam a paisagem palpável da memória, esses lugares que fizeram você. De certa forma, você também se torna esses lugares.
Alguma coisa, é certo, se gruda aos lugares, como uma música pode se grudar a certos momentos marcantes da vida. Mas talvez, com a repetição, o poder dos lugares se dilua. Talvez, com tantos reencontros, o cenário pare de evocar as memórias e vire apenas uma coisa aborrecida. Deve ser por isso que há anos não vou à Zona Sul da cidade. Não quero perder as tantas noites guardadas na minha cabeça como uma única noite em que eu dirigia a esmo e sentia uma antecipação deliciosa enquanto ouvia minhas canções preferidas do Guns n’ Roses.
5.
Todos nós precisamos de algum senso de estabilidade e algum senso de empolgação, vamos chamar o primeiro de casa e vamos chamar o segundo de aventura, duas ideias opostas ou complementares que passamos a vida tentando equilibrar e que qualquer livro de auto-ajuda mais sério ou psicologia pop vai citar de um jeito ou de outro (da minha guru de relacionamentos Esther Perel ao autor de Quatro mil semanas, Oliver Burkeman, sobre o qual um dia vou escrever aqui). Quando as pessoas falam disso, geralmente estão falando sobre relacionamentos amorosos e os muitos desafios de se estabelecer um vínculo afetivo no mundo de hoje. Mas acho que podemos expandir essa ideia para lugares. E a questão é que Porto Alegre para mim não é mais nem aventura nem casa.
6.
E a culpa que vem disso? Ah, vem.
7.
Nascido em 1951, o escritor André Aciman morou na mesma rua dos meus avós em Alexandria, ainda que possivelmente nunca tenham se conhecido. Aciman emigrou para os Estados Unidos com a família na década de sessenta e, no início da carreira, publicou um livro de memórias sobre a infância no Egito. Durante o processo de escrita, Aciman esteve em Alexandria, e sua memória tomou um caldinho da realidade. “Eu estava em Alexandria”, escreve Aciman, “com saudades de um lugar [Nova York] onde eu aprendera a recriar Alexandria, do mesmo jeito que os rabinos no exílio foram forçados a reinventar sua terra natal no papel, apenas para descobrir que talvez adorassem mais o papel do que a terra natal.”
8.
De repente me deu conta que o romance que estou escrevendo não é só uma tentativa de elaborar o luto pela minha mãe. É também um adeus à cidade onde eu nasci.
Se você gosta do meu trabalho, considere se tornar um assinante pago. Colaboradores têm acesso a um encontro mensal no Zoom. Assinantes pagos também recebem as edições exclusivas do Caderno Amarelo, que falam sobre o processo criativo do meu novo romance. Confira a programação!
22 DE MAIO, bate-papo com Juliana Leite – autora de Entre as mãos (Prêmio Sesc de Literatura) e Humanos exemplares.
24 DE JUNHO, clube de leitura sobre A gosma rosa, Fernanda Trías – Um livro apocalíptico com sotaque uruguaio.
16 de JULHO, bate-papo com Gaía Passarelli – escritora, repórter e um dos grandes nomes do Substack no Brasil.
13 DE AGOSTO, clube de leitura sobre Austerlitz, W.G. Sebald – como é que eu ia deixar esse autor tão absurdamente incrível de fora?
SETEMBRO, bate-papo com Murilo Hauser – Murilo escreveu o roteiro de Ainda estou aqui, a sensação brasileira premiada com o Oscar, e também adaptou A vida invisível para as telas (Prêmio Un Certain Regard em Cannes).
14 DE OUTUBRO, clube de leitura sobre A trama das árvores, Richard Powers – tijolaço sobre vida, árvores, planeta em perigo. Um livro que não sai mais da cabeça de quem lê.
NOVEMBRO, bate-papo com Noemi Jaffe – autora de muitas obras (a última é o excelente Lili – novela de um luto), professora de escrita criativa e dona de um dos Substacks mais inventivos do Brasil.
DEZEMBRO – livro brasileiro que será publicado em agosto e que foi uma das minhas melhores leituras do ano.
Sou novo aqui e depois desse texto fiquei com vontade de maratonar a todos nesse clima ameno que alegremente caiu sobre Salvador. Esse seu texto me lembrou um poema de Ocean Vuong, na parte que ele diz que "a parte mais bonita do seu corpo é para onde ele está indo". Sempre quando estou indo à faculdade escuto "Menino Deus" e agora vou lembrar sempre desse texto, que torna Porto Alegre um lugar de voltar e talvez nunca mais voltar também. A gente tem dessas: querer pertencer mesmo com a sensação de nunca está totalmente pertenço. Lindo texto <3
a gente sai de porto alegre e aí fica querendo que porto alegre nunca mude, pra gente poder voltar pra quela porto alegre que deixamos. esses dias precisei passar por lá e, apesar de ter amigas que ainda moram lá, não tinha mais uma casa pra ficar em porto alegre — desde que minha vó morreu e a casa dela foi desfeita, vendida, nada resta daquele apê no Cristal (com minha vó e meu vô dentro) que era meu porto seguro ao qual eu voltava sempre que cansava das aventuras em outros mil lugares que não eram porto alegre. enfim, tive que ficar num airbnb (na frente da redenção, maravilhosa localização, inédita pra mim que morava na zona sul) na cidade onde nasci.