1.
Minha mãe teve o mesmo carro de 1994 até o fim da vida, um BMW preto 325 com frisos internos de madeira, um carro que ela “tirou” no consórcio, o último número sorteado, e a obsessão por possuir essa máquina alemã nunca fez muito sentido, era apenas mais uma de suas muitas convicções inexplicáveis. Ouvíamos muita música juntas nesse carro. Minha mãe nunca teve discos preferidos, mas canções; era uma pessoa de hits e conectava sua vida com eles como, bem, a maioria de nós faz.
Um deles era Golden Slumbers, dos Beatles. Ela tomava essa coisa de “once there was a way to get back home” como algo muito pessoal, se emocionando a cada vez, depois sentia toda a catarse enérgica da faixa seguinte do Abbey Road, repetindo “boy, you’re gonna carry that weight” com os ombros realmente pesados. Uma outra de suas músicas preferidas era Time, do Alan Parson’s Project, em que o tempo vai fluindo como um rio até o mar (e o que há no mar? Um monte de cenas e momentos flutuantes?).
Minha mãe sempre me contava que um dia, ainda criança, perguntou para minha vó se ia morrer. Minha vó deu um abraço nela e disse para ela não se preocupar; até que virasse adulta, o mundo teria inventado uma solução para isso.
2.
No livro People love dead jews, Dara Horn conta que, desde a infância, sempre foi obcecada pela questão da natureza do tempo. A pequena Dara ia para a cama toda a noite e, na escuridão do quarto, pensava: o dia que acaba de terminar desapareceu. Para onde ele foi? Então começou a escrever como uma maneira de parar o tempo, de preservar os dias que sumiam, relatando em diários até os acontecimentos mais insignificantes para que eles vivessem no papel para sempre.
3.
Parece que há uma conta matemática que não fecha nesse raciocínio aí, porque escrever também consome tempo. Você teve um dia péssimo e resolve relatar esse dia; o dia péssimo cresce de tamanho. Por outro lado, você também pode aumentar o dia ótimo, como se o amplificasse numa caixa de som. Pois é, a conta matemática não fecha, mas essa talvez seja uma conta filosófica. Quem sabe uma conta zen? Shohaku Okumura diz que há sempre uma distância entre a experiência real do momento presente e as nossas ideias e interpretações sobre esse momento. Escreve Okumura: “o momento presente é inapreensível, embora seja o único momento real da experiência”.
Mas o que é a experiência real sem a interpretação dela, sem a linguagem, o raciocínio? Será que a experiência não nasce justamente da nossa capacidade de (tentar) compreendê-la?
4.
Sharon é a dona do lugar onde eu moro, a cabana que primeiro aluguei no Airbnb no longínquo ano de 2016 e que foi virando minha casa com a passagem do tempo e as muitas ruminações e conexões mentais sobre essa passagem do tempo. Uma mulher que tinha fama de dura, mas com a qual eu e a Melissa desenvolvemos uma relação bonita. Uma mulher que nos acolheu, que nos abriu a porta para esse lugar mágico, que dividiu suas sequoias centenárias com a gente. A mulher que instalou uma mesa Lifetime no nosso quarto para que eu escrevesse meu romance (acabei escrevendo dois). Em 2021, Sharon recebeu o diagnóstico de Demência por Corpos de Lewy, um tipo de doença degenerativa que começa com alucinações pesadas muito vívidas e que fazia Sharon enxergar corpos destroçados perto do açude, mas nesse ponto da doença ela ainda era capaz de manter uma conversa, assim como foi capaz de entender o diagnóstico e onde aquilo a levaria se seu coração insistisse em continuar batendo e seus pulmões insistissem em se encher de ar.
5.
O tempo passou. Mitchell, o marido dela, teve um AVC, morreu alguns dias depois, e ela não entendeu nada. Vieram as cuidadoras 24 horas. O jardim ficou descuidado e as esculturas de Sharon – ela era escultora – começaram a desaparecer por baixo de espinhentas camadas de arbustos de amoras-silvestres. Os galhos das macieiras subiram para o céu muito mais do que o desejado, e as maçãs Gravenstein já não nasciam tão gostosas. Sharon comeu e não entendeu nada. Nasceram as ninfeias no açude, uma, duas, três primaveras. Sharon não viu. Houve um momento em que ela repetia qualquer frase que você dissesse, mas até esses caminhos neuronais se apagaram, e as cuidadoras a colocaram para ver televisão por horas sem fim, algo que a velha Sharon, a Sharon real, a Sharon com o cérebro íntegro e ágil, teria certamente odiado com todas as forças.
6.
O dinheiro está acabando. Vão ter que colocar a Sharon em uma casa de repouso.
7.
A sobrinha nos manda um vídeo do quarto que Chris, a cuidadora com o coração mais quentinhos das três cuidadoras, está montando nessa casa de repouso que tem somente oito moradores. Fica em Sebastopol, a duas horas e meia daqui. Vemos a cama e o lugar em que ela pretende colocar uma mesinha. Vemos as bandeiras budistas de cores primárias que ela pendurou diante da janela. Vemos a estante com livros, esculturas e fotos do Mitchell em porta-retratos – a voz da Chris está dizendo “essa é a parte que mais me dá orgulho”, se referindo ao arranjo da estante, e obviamente eu choro com esse vídeo. Depois Chris coloca a mão na maçaneta e o dia estoura e estamos numa sacada ampla. Quase dá para ver o mar. Ou pelo menos tem aquele clima de vastidão que faz você imaginar o Pacífico logo ali.
8.
Sexta-feira a sobrinha chega para ajudar com a mudança. Haverá uma festa de despedida com as amigas. “Quero que seja bem como a Sharon teria gostado que fosse”, diz a sobrinha, nessa confusão verbal que é típica da demência: você se refere à pessoa que está ali, mas que ao mesmo tempo já não está. O presente e o passado se fundem num invólucro esquisito. O invólucro olha para você e o olhar perturba porque você se pergunta se há algum raciocínio por trás, alguma lembrança, ou se é só um globo ocular apontando a pupila na sua direção.
Você quer muito acreditar que alguma coisa é processada nos labirintos daquele cérebro.
“Vamos beber vinho, fumar maconha, como faria a Sharon”, continua a sobrinha.
Ninguém vai inventar uma solução para isso, então a gente atravessa o pátio com um baseado no bolso e entra na casa sorrindo.
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23 DE ABRIL, clube de leitura sobre Um guia para se perder, Rebecca Solnit – Solnit, a mulher que inventou o termo mansplaining, é uma das minhas ensaístas favoritas da vida. Esse livro lindo é uma mistura de auto-biografia, História, filosofia.
MAIO, bate-papo com Juliana Leite – autora de Entre as mãos (Prêmio Sesc de Literatura) e Humanos exemplares.
JUNHO, clube de leitura sobre A gosma rosa, Fernanda Trías – Um livro apocalíptico com sotaque uruguaio
16 de JULHO, bate-papo com Gaía Passarelli – escritora, repórter e um dos grandes nomes do Substack no Brasil.
AGOSTO clube de leitura sobre Os emigrantes, W.G Sebald – como é que eu ia deixar esse autor tão absurdamente incrível de fora?
SETEMBRO bate-papo com Murilo Hauser – Murilo escreveu o roteiro de Ainda estou aqui, a sensação brasileira premiada com o Oscar, e também adaptou A vida invisível para as telas (Prêmio Un Certain Regard em Cannes).
OUTUBRO clube de leitura sobre A trama das árvores, Richard Powers – tijolaço sobre vida, árvores, planeta em perigo que tive a honra de traduzir. Um livro que não sai mais da cabeça de quem lê.
NOVEMBRO bate-papo com Noemi Jaffe – autora de muitas obras (a última é o excelente Lili – novela de um luto), professora de escrita criativa e dona de um dos Substacks mais inventivos do Brasil.
DEZEMBRO – ?
linda e dura reflexão sobre o abandono que nosso próprio corpo pode nos proporcionar. senti uma imensa empatia pela Sharon e também uma tristeza por este fim de vida em vida.
Um pedaço de Sharon vai e muito de Sharon fica … no jardim, nas esculturas disformes e em vocês. Bravo, Carol!! 🌷