Nevoeiro #36
O tempo do Fim de Século; passado em alta definição; nova turma do curso de romance
Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la. Colaboradores tem acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura mensal que acontece via Zoom, às 19h. E em julho teremos uma novidade que conto no final da edição! Assinantes pagos também recebem o Caderno Amarelo, uma edição mensal que acompanha o processo criativo do meu próximo romance.
1.
Fim de Século era o nome de um lugar que eu frequentava no final dos anos noventa, um lugar de música eletrônica, o tipo de som que eu nunca consegui gostar mesmo sendo constantemente exposta a ele, para mim aquilo era brutalismo em forma de música, jamais fui capaz de achar nem o minimozinho sentimento naquelas ondas sonoras, e além do mais eu não dançava, e quase não bebia. Minha única razão para cruzar a porta do Fim de Século e descer as escadas intermináveis, três andares escuros de subsolo piscando nuvens de nicotina, vinha a ser que essa danceteria – como a gente chamava na época – era um ponto de encontro GLS – como a gente também chamava na época –, a vovozinha da sigla LGBTQIA+, nesse momento da vida em que eu tinha dezesseis, dezessete anos, e queria desesperadamente ficar com meninas. Eu entrava no Fim de Século com uma cópia mal forjada da carteira de identidade. Uma Carolina inventada que tinha nascido em 1980. Beijei a primeira guria da minha história no segundo subsolo. Tinha sabor de Bubbaloo de amora, uma edição limitada, que desapareceu junto com o Bubbaloo banana e o Bubbaloo melancia.
2.
Essa menina virou bolsonarista. Mas isso já seria outra história.
3.
O planejamento do meu próximo romance me levou a procurar imagens do Fim de Século na semana passada. A gente está tão mal acostumada a encontrar tudo na Internet que o sentimento de sair de mãos vazias é esquisito, quase perturbador. Quando estamos procurando algo que faz parte da nossa história, e então não achamos nada, a sensação de desconforto se amplifica. Por um momento, é como se o caminho de onde você veio estivesse se apagando. Uma estrada de terra em que o seu próprio movimento faz levantar um rastro de poeira impenetrável.
4.
Mas não posso dizer que não encontrei absolutamente nada. Achei sim umas migalhas. O velho logotipo com o triângulo. Uma foto pequena de uma das pistas de dança vista de cima. No Youtube, há um vídeo de dez minutos gravado no dia 10 de maio de 1998 (por quem, por quê?): os corpos são vultos sob a luz estroboscópica, e a batida da música cria uma tensão que nunca se dissipa. Dois caras são filmados mais de perto por coisa de cinco, seis segundos, e ambos estão com capacetes de moto na testa. É possivelmente uma gravação feita com uma câmera VHS, granulada, às vezes com aquela textura de linhas que sobem e descem e somem. Na verdade, me parece bem adequado para uma coisa que já não existe, esse ruído do tempo, essa cortina brumosa entre o presente e uma cena do passado. É como se o meio físico também carregasse algo semelhante às lacunas da nossa própria memória.
Isso, de algum jeito, amplifica minha nostalgia. Só a música acaba atrapalhando um pouco: pra mim, parece desprovida de qualquer marca temporal, é anti-nostálgica por excelência mas, ainda assim, tento me colocar naquela cena, eu com dezesseis anos e uma trilha sonora que nunca me traz conforto, só deixa tudo mais apressado, angustiante, desencaixado. O zumbido não some nem quando me deito no meu quarto de decoração infantil.
5.
Nunca tirei uma foto dentro do Fim de Século. O máximo que eu tenho é um albinho capa kodak de um encontro entre amigos que fiz nesse universo, todos frequentadores do mIRC, especificamente o canal #techno, no tempo em que # não significava hashtag. Chega a ser engraçado hoje pensar em todas as horas de música eletrônica que eu tive que suportar só porque queria conhecer meninas. O pessoal do canal #techno se chamava pelos seus nicknames, mesmo quando se encontravam ao vivo. Tinha a Yaka, a Pinta, a Básica, o Lokito, o Holy Angel, o Susto. Eu era a Alanis. Ou melhor: AlaNiS. No tempo que a gente brincava com maiúsculas e minúsculas.
6.
Quando encontramos fotos antigas de familiares já mortos, ou elas são preto e branco ou, no mínimo, fotos coloridas adulteradas pelos anos: certos tons que desbotaram e que assim criam uma distância maior com o tempo presente. Mesmo essas minhas fotografias de adolescência parecem antigas, não só pela juventude das pessoas retratadas, mas também porque o papel brilhante se tornou esquisito, e as pessoas às vezes estão mal enquadradas ou fora de foco. Não sei sinceramente como vai ser quando nossas imagens do passado forem as fotos em alta resolução – e com mil tentativas – que tiramos hoje. Talvez um dia isso pareça velho também. Talvez, sei lá, a gente guarde hologramas de tudo o que já aconteceu conosco.
7.
Por isso acho tão aterrorizante ver fotos antigas colorizadas. Sério que a Primeira Guerra aconteceu a cores? E que tal esses snipers russos em 1941, o menino loiro em primeiro plano com o dente de ouro que realmente brilha?
(Colorizado por Julius Backman, dá pra ver mais no Instagram do rapaz)
8.
Volto ao vídeo do Fim de Século. Tem algo de fascinante, e até a música agora parece combinar com a imagem. O mesmo cara com a camiseta branca largona, dançando. Um vinil rodando na mesa do DJ. Um zoom repentino em alguém que está com uma filmadora VHS. É um enigma, uma fita sem etiqueta encontrada dentro de um armário, que só traz um mínimo pedaço do que aconteceu, do que estava lá e já não está. Mas, como dizem os cientistas que estudam o cérebro: esquecer é tão importante quanto lembrar.
Na semana que vem, dia 17, vou abrir inscrições para meu curso online, As Engrenagens do Romance. Se você quer receber as informações em primeira mão, deixe seu e-mail nesse formulário.
Em julho, a edição normal do nosso clube de leitura será trocada por uma conversa com a escritora Giovana Madalosso, dos excelentes Tudo pode ser roubado e Suíte Tóquio. Como estou no início de um processo de escrita de romance e ela está quase no fim do seu – e como adoramos trocar áudios de WhatsApp sobre isso –, decidimos fazer essa troca de figurinhas em público.
Cabeça, cortiça, caderno: a jornada de escrita de um romance acontecerá no dia 8 de julho, às 19h, via Zoom. O bate-papo vai ficar gravado para os colabores que não puderem assistir ao vivo.
Sendo assim, segue nossa agenda (e temos livros novos!)
8/8 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
11/9 – Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Elvira Vigna
9/10 – Uma casa no fim do mundo, Michael Cunningham
13/11 – Onde cantam os pássaros, Evie Wyld
10/12 – Os ratos, Dyonélio Machado
É engraçado como esse negócio de “nenhuma experiência é única” é real. Em Imbituba o Fim de Século se chamava Tribo da Lua – e teve outros nomes até fechar definitivamente e ser demolido para virar um estacionamento. Era uma época sem smartphones e as câmeras digitais ainda eram novidades, de modo que existiam sites especializados em fazer as “coberturas fotográficas” das festas – em Imbituba o Ulalau era o maior; esperávamos ansiosamente por fotos que posteriormente seriam postadas no Orkut. O Ulalau, assim como o Tribo da Lua e o Orkut, também não existe mais; assim como qualquer outro registro dessa época. É como se o início dos 2000 só existam na memória de quem os viveu.
PS: Também fico de cara com essas imagens colorizadas da Segunda Guerra porque deixa tudo mais humano.
PPS: Aos que lerem esse comentário e estejam interessados no curso da Carol essa é a hora; recomendo muito.
"esquecer é tão importante quanto lembrar". Nunca tinha parado pra pensar nisso. Me pegou. A memória, depois da menopausa, não anda lá essas coisas, esqueço coisas que antes lembrava com facilidade (tipo nomes), e esquecer vai dando uma agonia, às vezes. Vou (tentar) lembrar dessa frase.