André Avila / Agência RBS
1.
Nos primeiros dias das enchentes do Rio Grande do Sul, a mídia do centro do país não tem a mais vaga noção da dimensão do desastre: os portais não colocam um peso especial nas notícias relacionadas e, ainda por cima, usam um vocabulário constrangedoramente modesto. Palavras como “alagamento” fazem parecer que estou lendo notícias de trânsito. No Instagram, cada amigo tocando seu café da manhã, fazendo o nenê rir, indicando um filme, reclamando do trabalho, parece estar debochando da tragédia. Não estou dizendo isso para malhar a imprensa – que logo caiu na real – ou para criticar os amigos que, claro, não tinham culpa de não estarem vendo o mesmo feed do desespero que eu estava vendo. Eles não tinham culpa de não estarem testemunhando um cara tirar álbuns de família da lama e outro catar no meio do lago que virou sua casa um presente de dia das mães que ele havia comprado para a esposa. Não tinham culpa de não ter nenhuma relação com os lugares alagados, nenhuma memória, nenhuma versão de si mesmo atravessando aqueles espaços agora cheios de uma água barrenta. Estou dizendo isso porque percebi claramente que a raiva e o desespero que eu sentia alimentavam a minha identidade. Era aquela mesma identidade gaúcha que eu havia rejeitado quando parte do povo do meu estado deu uma guinada à direita. Agora, em vez de rechaçar essa identidade, eu queria me enrolar em uma bandeira verde, vermelha e amarela e chorar escutando uma milonga do Vitor Ramil.
2.
Uma cicatriz na identidade não é grande coisa diante de dramas muito mais concretos. Meus pés estão constrangedoramente secos. O que você fez na enchente de 24? Eu estava a 10.745 quilômetros da minha terra natal.
3.
No segundo dia em que a água escoa com violência pelas ruas de Porto Alegre, jogando o Centro da cidade em um tempo que é, simultaneamente, antigo (enchente de 1941) e premonitório, meu primo se voluntaria em um centro de triagem de doações. Para mim, aquilo é o primeiro sinal de que muitas pessoas que nunca se envolveram com ativismo e trabalho social vão ocupar as linhas de frente da tragédia. A amiga do mercado financeiro faz heroicos salvamentos de gatos e idosos nas ruas convertidas em rios do Humaitá. Os stories de viagens internacionais de outra amiga são substituídos por porta-malas lotados de compras, roupinhas de bebê para grávidas que perderam tudo, livros infantis lidos em voz alta em abrigos. Um conhecido roda a zona de guerra da cidade atrás de Bico Doce, Roco, Pirata, Paloma, Fiasco e Fiasquenta, as galinhas que um menininho perdeu na enchente. De longe, faço doações para instituições e coletivos, muitos dos quais já existiam antes da catástrofe, e me pergunto por que nós não conseguimos ter esse senso comunitário na vida cotidiana, especialmente em um país tão desigual quanto o Brasil. “O sofrimento do dia a dia é naturalizado”, resume uma amiga em um áudio de Whatsapp.
4.
Já disse em outra edição desta Nevoeiro que minha tendência natural é sempre procurar respostas em livros. De crises de relacionamento à sociologia de desastres, a primeira coisa que os livros revelam é que as perguntas que você se faz não têm nada de únicas: milhões de outras pessoas já passaram por isso, milhares de outros eventos já foram estudados, centenas de teorias foram desenvolvidas.
5.
Rebecca Solnit é uma das minhas ensaístas favoritas. Talvez você a conheça porque ela inventou o termo “mansplaining” – a tendência que os homens têm de explicar algo a uma mulher de maneira condescendente –, mas a obra de Solnit é vasta, e vai da militância climática a ensaios lindos sobre paisagem, passando por reflexões sobre George Orwell e o hábito dele de cultivar rosas. Em 2009, Solnit lançou “A paradise built in hell: the extraordinary communities that arise in disaster” [Um paraíso construído no inferno: as extraordinárias comunidades que nascem a partir de desastres. Alô, editoras!]. Achei que tinha chegado o momento de ler esse livro. Motivada talvez pelo episódio traumático do Katrina, Solnit revisita cinco desastres, começando com o terremoto de San Francisco em 1906 e terminando justamente com a devastação de New Orleans em 2005. Estou no terremoto da Cidade do México de 1985, e já com um arsenal de citações maior do que seria sensato compartilhar aqui.
6.
A teoria geral de Solnit é de que a resposta popular diante de uma tragédia de grande magnitude é muito mais altruísta, colaborativa, criativa e anárquica – no bom sentido – do que o funcionamento cotidiano da nossa sociedade. A resposta civil a uma catástrofe seria uma espécie de janela para a utopia, uma oportunidade de dar um restart na máquina social. Confesso que fazia anos que eu não via a palavra utopia, falamos sem parar no oposto disso, distopia, e é possível que a própria autora fosse bem menos otimista se tivesse escrito esse livro nos últimos cinco ou seis anos. Ainda assim, há algo de atemporal em todo o rol de pensadores e reflexões que Solnit traz. Referindo-se em 2010 ao terremoto de 1906 em San Francisco, Solnit responde uma das perguntas que me faço em 2024:
Não é como se a fome não existisse em San Francisco antes de 18 de abril, embora fosse menos visível e difundida; a cidade era em 1906 uma sociedade de vários níveis, com muita opulência no topo e miséria tenebrosa na base. É tentador perguntar por que, se você alimentou seus vizinhos durante o terremoto e o incêndio, você não o fez antes ou depois. Uma das razões é que você não estava focado em planos de longo prazo – doar milhares de quilos de carne não era, obviamente, lucrativo para [o restaurante] Miller & Lux, mas, nos dias que se seguiram ao desastre, não havia planos de longo prazo, apenas as demandas imediatas da sobrevivência. Uma outra razão é social: naquele instante, as pessoas sentiam uma solidariedade e uma empatia umas pelas outras que não sentiam em outros momentos. Elas estavam literalmente próximas uma da outro, as paredes literalmente caíram ao redor delas enquanto elas se aglomeravam em praças e parques, levavam fogareiros para a rua para cozinhar, faziam fila para obter alimentos. Todos sobreviveram à mesma provação. Eram membros da mesma sociedade, e esta sociedade havia sido ameaçada pela catástrofe.
7.
Outra amiga, outro áudio do Whatsapp. Uma descrição de um abrigo. Ela me conta do momento difícil de deixar os abrigados e ir para casa quentinha, para a cama confortável, enquanto eles dormem num ginásio ou sob o teto de uma igreja. Me ocorre que, em muitas casos, é a primeira vez que as pessoas de cima da pirâmide estão em contato com as pessoas de baixo em uma relação que não é uma relação servil. Não sei se isso vai ter o poder de mudar uma sociedade a longo prazo, mas talvez seja um evento transformador para alguns de nós, e isso já faz toda a diferença.
8.
Vou jogar aqui mais um trecho longo de “A paradise built in hell” que me parece extremamente relevante. Solnit nesse momento está citando o sociólogo norte-americano Charles E. Fritz, um pioneiro dos estudos sobre desastres:
A primeira premissa radical de Fritz é que a vida cotidiana já é uma espécie de desastre, do qual o desastre real nos liberta. Fritz ressalta que as pessoas sofrem e morrem diariamente, embora em tempos normais o façam de forma privada, separadamente. E escreve: “O contraste tradicional entre ‘normal’ e ‘desastre’ quase sempre ignora ou minimiza as tensões recorrentes da vida cotidiana e seus efeitos pessoais e sociais. Ele também ignora um conjunto historicamente consistente e em contínuo crescimento de análises políticas e sociais que apontam para o fracasso das sociedades modernas em satisfazer a necessidades humanas básica de um indivíduo no que se refere à sua identidade comunitária. Mais adiante, Fritz descreve mais especificamente como esta identidade comunitária é alimentada durante o desastre: “A partilha generalizada de perigo, perda e privação produz uma solidariedade íntima, principalmente de grupo, entre os sobreviventes, que supera o isolamento social, fornece um canal para comunicação e expressão íntima, e oferece uma importante fonte de apoio e segurança física e emocional.”
9.
Disse a ativista social Dorothy Day há mais de um século: “Enquanto a crise durou, as pessoas amaram umas às outras.”
10.
Bico Doce, Roco, Pirata, Paloma, Fiasco e Fiasquenta ainda não foram localizados. Mas alguém tentou procurá-los, fez bonecos de massinha de modelar, contou histórias pro menino que os perdeu. A crise vai durar muito. Que a gente possa, durante esse tempo, manter aberta a janela da utopia.
Obrigada, Rafaela Pechansky, Laura Dias, Mariele Giovanaz e Bruno Lorenz pelas trocas e desabafos. Obrigada principalmente pelo trabalho de vocês. E obrigada a todas e todos que, de algum jeito, estão ajudando o Rio Grande do Sul, de perto ou de longe.
A Julia Dantas, escritora gaúcha, conta aqui do horror da água entrando na casa dela. A TAG e a doispontos vão direcionar 100% do valor para a Julia se você comprar essa linda edição do “Ela se chama Rodolfo”.
Não faz sentido agora divulgar a versão paga dessa newsletter, mas, em respeito aos assinantes – e porque o clube de leitura precisa seguir, a literatura precisa seguir –, divulgo aqui o calendário de nossos próximos encontros:
20/5 – Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8 – Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
Também por respeito aos colaboradores, a edição do Caderno Amarelo (um diário sobre processo de escrita de um romance) vai sair no dia 30 desse mês.
Chorei lendo, talvez o choro contido dos últimos dias desaguou. Sou uma das privilegiadas que nao teve a casa alagada. Moro no Centro Histórico de Porto Alegre e estamos há 14 dias sem energia elétrica. Estou abrigada em casa de amiga em Viamão e, na medida do possível, ajudamos na Cozinha Solidária do MST que produz milhares de marmitas e as envia para vários abrigos, inclusive de helicóptero para a arrasada Eldorado do Sul, onde 4 assentamentos de produção agroecológica estão submersos em águas barrentas. Em frente à cozinha, no Assentamento Filhos de Sepé, há um grupo de mulheres costurando calcinhas solidárias para doar às abrigadas. Dentre elas, mulheres que perderam tudo na enchente em Eldorado. O MST tem sido - como sempre foi a mim - meu alento, minha terapia, minha cura de mim mesma. Me orgulho de ser apoiadora deste movimento histórico que segue fazendo o que sempre fez (coletividade, partilha, luta, agroecologia e solidariedade). Apesar das contradições inerentes a tudo que é do humano, sem romantizar demais, há esperança no fim do túnel deste mar de lama podre cheia de agrotóxico, terra arrastada por solos desprotegidos na monocultura do agro, plásticos, lixo e corpos mortos de bichos que somente são percebidos enquanto recursos e não como vidas que compõe a teia biodiversa de nossa existência.
Carol, sei que para quem está longe é difícil saber como ajudar, mas gostaria de te dizer que tu me ajudaste demais com esse texto. Eu ainda não consegui elaborar bem os sentimentos diante de tudo que nos acontece, além de cometer pequenos textos encharcados de dor, e ajudar tem sido uma bóia salva-vidas para mim e para muita gente. É o que podemos fazer por quem está mais vulnerável. E parece que somos muitos os capazes de sentir a dor dos outros, que bom. Tudo o que não queremos é que as coisas voltem a ser como antes, desenhadas para o desastre. O futuro é mais turvo do que as águas do Guaíba, mas se esse respiro de utopia nos levar por caminhos mais justos será uma conquista no meio do caos. O que fica claro em todas essas tragédias, ainda que raptem nossos perspectivas por um tempo, é que não existem soluções individuais frente ao levante da natureza. No RS, a fresta de lucidez aberta pelas águas talvez nos apresente soluções coletivas. Vou comprar o livro. E me convencer que podemos sonhar um pouquinho no meio de tanta lama. ❤️