1.
Quando leio ficção, tudo começa com uma película de materialidade, que é o ato de fazer o chá ou o chimarrão, sentar na cadeira de balanço ou escolher a posição perfeita para colocar a cadeira na varanda, e finalmente abrir o livro, enganchar os polegares nas páginas, sentir aquele peso retangular no colo, deslizar polegar e indicador pelo papel fino à medida que se avança na história. Essa sensação, eu sentada do lado de cá, me parece indissociável da trama que se abre do lado de lá; meu tempo de leitura e o tempo da história se misturam em uma substância oleosa. Se a ficção é ruim, meu corpo se mexe na cadeira, começa a pensar em fazer outra coisa; a materialidade do ato, por mais bonito que seja, infelizmente não basta. Se a ficção é boa – normalmente uma convergência entre boa fofoca e ótima estética –, tenho a sensação de que algo macio e quentinho está me segurando. Acho curioso que muitas pessoas parem de ler ficção conforme envelhecem, como se já tivessem decifrado o enigma do que é ser humano, do que é estar no mundo, como se já tivessem desvendado todos os ângulos possíveis de uma história e todos os significados que um mero objeto – um peixinho de porcelana, um fragmento de ametista – pode carregar. Quando alguém para de ler ficção, todo mundo em volta perde com isso.
2.
Às vezes a história de um livro é monumental, cheia de acontecimentos mirabolantes, mas o que chama sua atenção, o detalhe que fica voltando e voltando na cabeça, é uma coisinha de nada. E você o escolheu – ou foi escolhido por ele –, apenas um entre milhares de outros. Não adianta ficar perdendo tempo em porquês; apenas sinta a potência daquele flash de vida.
3.
Estou lendo agora um livro chamado Devil House, que recebi do meu editor americano, Ben Brooks (Diorama será publicado pela MCD, um selo da prestigiosa Farrar, Straus and Giroux). Devil House, de John Darnielle, é um calhamaço de 403 páginas centrado em um sujeito que escreve livros true crime. Faz uma semana que minha mente fica voltando a uma cena da página 71 em que uma mulher solteira, professora do ensino médio, está fazendo as compras da semana no mercado e de repente não resiste ao impulso de colocar dentro do carrinho uma daquelas revistinhas dispostas na boca dos caixas, no caso uma chamada Everyday Witchcraft, que tem na capa um gato branco e uma bola de cristal sobre uma toalha de veludo preto. A mulher dá um sorriso enquanto espera a vez dela no caixa. Aquela pequena compra, imprevisível, fora da curva, parece dar sentido a todo o seu dia.
4.
Fazia muito tempo que meu ato de escutar música não era acompanhado de qualquer materialidade. Nasci em 1982, talvez tenha tido algum vinil do Balão Mágico que não lembro muito bem, depois fui para as fitas-cassete e os CDs, lembro de ficar encostada no armário da sala da televisão – onde também ficava o som da casa – ouvindo Alanis, Jewel, Smashing Pumpkins, decorando a ordem das músicas, acompanhando as letras no encarte. Depois, CDs gravados para ouvir no carro, depois um ipod, e finalmente os serviços de streaming. Por um breve período, aos trinta e poucos anos, tive uma vitrola e fiz uma coleçãozinha bacana de discos que trazia de viagens e comprava nas feiras porto-alegrenses que comecei a frequentar, e adorei esses anos e o quanto ouvir música se tornou algo mais significativo e encorpado, mas a mudança para a Califórnia me fez vender o toca-discos e quase toda a minha coleção. Então por anos fiquei pensando em voltar aos vinis, mas nossa casa aqui não é muito grande, já é difícil achar espaço para livros, e ceder a mais esse desejo de colecionismo e coisas concretas criaria um problema adicional. E eis que, cinco anos e cinco meses depois da mudança, comprei um toca-discos e foda-se.
5.
Mais do que um toca-discos: um móvel, duas caixas de som de verdade – minhas primeiras da vida –, uma bromélia, alguns discos novos trazidos do Brasil, outros que tinham ficado comigo. O móvel da vitrola passou a ser o coração da sala (agora fico pensando o que era o coração da sala antes. Com certeza nunca foi a televisão, que fica escondida atrás da salamandra, e então é preciso tirá-la dali quando vamos fazer fogo, ou pegá-la e instalá-la a cada vez que queremos assistir alguma coisa). É curioso que ouvir discos esteja sendo ainda melhor do que eu fantasiava, às vezes às duas da tarde eu já estou pensando em que álbum vou tocar na vitrola quando parar de trabalhar – pelas seis –, o vinil é quase sempre descrito como algo mais “quente” e mais “encorpado” do que as mídias digitais, mas talvez a questão principal é que o fato de as canções saírem das ranhuras concêntricas de uma superfície preta parece muito mais bruxaria do qualquer outra forma de reprodução.
6.
Há também algo que passa pela restrição das escolhas. Eu sei, às vezes tenho vergonha dos meus rompantes anti-modernidade. Pode parecer meio ridículo romantizar a escassez. Mas há duas verdades inegáveis nisso: primeiro, a de que o “progresso” sempre me causou um certo desconforto ou, no mínimo, sentimentos dúbios, tanto é que toda a minha ficção roçou nesse campo minado, a mata que dá lugar a um condomínio de luxo com nome gringo, as meninas que saem da cidade sem celular para fazer uma viagem de carro, os hippies californianos, a profissão totalmente anacrônica de taxidermista, e todos os lugares que estão sempre ruindo, desaparecendo, se sobrepondo, sendo esquecidos. A segunda verdade inegável é a de que ter tudo ao alcance tira sim um pouco da graça e da intensidade das experiências (ou ao menos essa é a minha verdade inegável).
Você pode comprar um disco por mês. Qual você vai escolher?
7.
Parei no item anterior, fui até minha estante, abri um livro. On longing, Susan Stewart. Encontrei um trecho que sublinhei há anos. É sobre narrativas. No fim, tudo sempre volta para esse lugar. É meio cabeção, um livro teórico, não estou acostumada. Stewart diz que narrativas dependem, implicam sempre, um fechamento.
Os limites dos acontecimentos constituem a base ideológica para a interpretação do significado de tais acontecimentos. Na verdade, sem narrativa, sem a organização da experiência, os acontecimentos não podem ocorrer.
Fiquei pensando que minha coleçãozinha de discos pode ter muito mais a ver com a ideia de limites, de sistema fechado, e portanto de narrativa, do que propriamente com a ideia de escassez.
E talvez essa seja a questão central: se o feed de nossas identidades é infinito, quem, afinal, somos nós?
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Aqui estão nossas próximas leituras. Sempre envio o link do Zoom na véspera do encontro. Em breve, vou adicionar os livros de setembro e outubro.
9/4 – O túnel, A. B. Yehoshua
9/5 – Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8 – Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
Durante o isolamento social eu também entrei numa pira de ouvir vinil. E optei por montar o sistema de som com aparelhos analógicos, toca discos + receiver + caixas de som (convencido pela opinião dos especialistas de que os aparelhos novos não são tecnicamente bons). Nos últimos meses, esse hábito anda parado, porque o toca-discos que eu tenho quebrou e estou sem dinheiro pra comprar outro. Mas sim, é bom demais; o ritual de pegar essa peça redonda preta, botar para girar e colocar uma agulha em cima para reproduzir o som tem algo de alquímico, mesmo. E também tem isso que voce reflete a partir do trecho da Susan Stewart: construir a nossa discografia tem algo de organizar nossas escolhas e, a partir disso, expandir nossos prazeres.
De minha parte, dos meus 30 e poucos discos que tenho em casa, há uma predominância pelo rock alternativo/independente dos anos 1990/2000 e pelos cantores-compositores que gostam de pirar em vários estilos e que vão registrando esses experimentos conforme o tempo passa, tipo Neil Young (tenho três vinis dele até agora). Tenho um carinho especial por todos os discos que escolhi.
Uma pergunta para fechar meu comentário, Carol: curte a banda do John Darnielle, The Mountain Goats?
eu fui totalmente na tua linha contrária: eu trouxe meu toca-discos e metade dos vinis comigo pro outro lado do mundo. A poesia da história acontece 3 anos depois, quando eu compro um apartamento em Estocolmo e a antiga dona é Britt-Marie, uma senhora de 70 anos que resolve me deixar o toca-discos e metade da coleção dela.
domingo é meu dia de ouvir discos e, além do apelo de descobrir bandas que não estão na internet, de vez em quando a capa do disco tem uma dedicatória de algum amigo de Britt-Marie... muitas delas dos anos 60. é muito muito legal.
no mais, chega de scroll infinito, peloamor.