Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la. É baratinho, e significa muito. Colaboradores tem acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura mensal que acontece via Zoom, às 19h. A partir de janeiro, assinantes pagos também recebem uma edição mensal que acompanhará o processo criativo do meu próximo romance.
1.
Certas músicas pop dos anos noventa devem fazer o meu cérebro se acender e brilhar e se encher de confete em todos os cantinhos possíveis como uma casa em festa. Just a Girl, Semi-Charmed Life, Losing My Religion. Há outras que me deixam num estado um pouco mais agridoce, mas de atividade neurológica igualmente intensa: 1979, I Still Do, November Rain. São canções da sua adolescência, você vai me dizer, que carregam mais do que elas próprias, é natural. Verdade. Uma canção tem de fato o poder de ser maior do que si mesma. Nenhuma dessas que citei está associada a um episódio em si, mas a um certo período da vida, sem inícios e fins claros, a trilha sonora de algo meio brumoso; às vezes as músicas são mesmo quase tudo o que resta, quase tudo o que conseguimos acessar: não somos capazes de nos lembrar exatamente como nos sentíamos aos 15 anos, não lembramos com clareza das coisas que desejávamos e do que tínhamos medo e do que jamais confessaríamos aos nossos amigos daquele tempo. Nesse sentido, parece curioso, ou até mesmo paradoxal: no que exatamente pensamos ao ouvir essas velhas canções, se já esquecemos de tanta coisa? O que surge na minha mente quando ouço Semi-Charmed Life em uma autoestrada da Califórnia aos 41 anos? Talvez eu veja rostos vagos do passado, lugares, mas quase nada de narrativa. E, no entanto, o cérebro acende, responde, entra em um estado de êxtase. A música é uma ponte entre dois tempos e dois lugares.
2.
Faz anos que não consigo criar nenhuma relação com o pop atual, e o motivo disso deve ser esse aí de cima. A música sempre se mistura ao processo de envelhecimento de um jeito meio indissociável e, quando nos damos conta, viramos aquela pessoa ranzinza que “não aceita as mudanças”, que acha que “tudo que é novo é decadente”, “melhor era no meu tempo”, etc. Mas me parece que o que devemos mesmo prestar atenção aqui é que essa aparente falta de abertura para o novo vem de uma mudança em relação à nossa exposição à música pop. Quando eu era adolescente e jovem adulta, eu ia a festas, assistia MTV, ouvia rádio, descobria sons novos na casa de amigos. Hoje, música pop é uma coisa que eu associo ao sistema de som da Zara. Música da Zara. Nada, portanto, “gruda” nessas canções, pessoalmente falando, a não ser a sensação brutal do capitalismo, da iluminação excessiva, da obrigação que sinto de comprar roupas para passar minimamente despercebida em um ambiente urbano. E com isso não quero dizer que minha vida é sem graça, desprovida de momentos significativos, e que meus quarenta anos não vão estar cheios de marcas musicais como os vinte; a diferença é que tenho mais controle sobre a trilha sonora da minha vida e que, pelo motivo “vida adulta” e pelo motivo “tecnologia”, ouvir música se tornou para mim algo muito mais solitário, quase desprovido do que sempre fez e ainda faz parte da música de modo geral: o sentido de pertencimento, a inclusão a um grupo.
3.
A música é tão inseparável do contexto que às vezes isso me assusta e me frustra: como assim eu, uma pessoa que adora música, sou incapaz de ver uma canção pelo que ela é apenas na sua essência? Houve um caso emblemático de uma “música da Zara” que se encheu de significado para mim. Talvez eu já tivesse a ouvido nos alto-falantes de uma loja, na recepção de um hotel ou dentro de um Uber, mas nada a separava dessa massa pop que batia em mim e ricocheteava como uma bola de pinball. Então um dia ela tocou numa cena lindíssima de um filme da Céline Sciamma, Bande des filles: Diamonds, da Rihanna. Na cena, quatro adolescentes negras da periferia de Paris estão num quarto de hotel. Elas têm vidas fodidas cheias de sonhos, e acabaram de roubar roupas (talvez da Zara!), que agora experimentam no quarto, felizes da vida com o que elas podem ser apenas por aquela noite. Uma das meninas está sentada na cama enquanto as outras três dançam Diamonds. Ela tem um sorriso absurdo, de transformação acontecendo em tempo real, e aquilo é tão tocante que eu fiquei hipnotizada. Então ela se levanta e se junta às outras. Só de rever a cena me dá um nó na garganta. Hoje, se escuto essa música, lembro das meninas do filme, mas também consigo transportar aquela emoção pra minha própria vida, de algum jeito misterioso que só músicas são capazes de fazer.
4.
Esse tipo de acontecimento faz a gente pensar se o contexto acaba sendo mais importante do que a canção em si. Eu diria que não, que contexto não é tudo, que a canção pop também tem que dar alguma coisa, que é preciso haver algo nela, musicalmente falando, que cause no ouvinte a sensação x ou y. Pegando esse exemplo da Rihanna, não acredito que eu conseguiria criar qualquer relação com Right Now, do mesmo álbum de Diamonds, que acabo de ouvir escrevendo essa newsletter para testar minha tese, uma música que para mim simplesmente soa como trilha sonora de academia. Diamonds, por outro lado, tem essa parede de som etérea tristonha que pode lembrar coisas que eu já gosto – Radio Dept., Depeche Mode – ainda que em um registro 1.000% mais comercial.
No livro Listen – que fermentou em mim muito desses pensamentos que estou descrevendo aqui –, Michel Faber analisa os comentários que usuários do YouTube no vídeo de Summer of 69, do Bryan Adams. Segundo Faber, a imensa maioria dos comentários não era sobre a canção em si, mas sobre o próprio passado do usuário (a música é de 1985). Memórias evocadas pela música, em resumo.
Faz poucos anos que tive contato com Summer of 69. Acho que Bryan Adams nunca chegou a acontecer no Brasil, exceto com aquela música que fazia parte da trilha sonora do Robin Hood (e que eu sempre achei extremamente irritante). Portanto, desprovida de memórias juvenis ligadas a Summer of 69, posso dizer que sinto algo de pungentemente nostálgico nessa obra pop de 3:37, e que isso não é apenas uma questão de letra, mas de melodia: aquela mudancinha em Oh when I look back now / That summer seemed to last forever é de maltratar o coração.
5.
Já que só falei de música hoje, compartilho com vocês algumas coisas que ouvi bastante esse ano, e que juntei nessa playlist em busca de uma vibe tranquila de domingo chuvoso. Certamente a que mais me toca em algum ponto sensível é a última, do Califone. Nunca prestei atenção na letra.
Antes de mais nada, agradeço demais a todos os colaboradores da Nevoeiro. Vocês superaram minha expectativa. Obrigada por permitirem a existência desse projeto.
A cena que mencionei do filme da Céline Sciamma pode ser vista aqui.
O livro que estou lendo sobre música é esse. Comprei numa livraria depois de ler a orelha porque gostei da proposta: não é um livro sobre música como tantos que existem, mas uma obra que pretende explorar as questões como ouvimos música e por que ouvimos. Por enquanto, estou achando interessante, mas irregular.
Aqui está a agenda das leituras do Clube Nevoeiro, de janeiro a julho. Os encontros ocorrem viam Zoom, sempre às 19h (horário de Brasília). Colaboradores recebem o link do encontro via e-mail.
8/1: Por que o budismo funciona, Robert Wright
7/2: Migrações, Charlotte McConaghy
12/3: Um homem só, Christopher Isherwood
9/4: O túnel, A. B. Yehoshua
9/5: Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6: Temporada de furacões, Fernanda Melchor
9/7: O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
Talvez o fato de que podemos hoje ouvir qualquer música desejada a um ou dois clics de distância tenha tornado o ato de ouvir música um pouco menos sagrado e algo mais mecânico. Na década de 80, lembro, deixávamos uma fita cassete engatilhada no tapedeck nas teclas play-rec-pause, só esperando a rádio tocar o desejo daquela semana, daquele dia. Além da questão da grana, da impossibilidade de se ter todos os discos que o coração almejava, havia o intervalo entre o lançamento do álbum e sua chegada nas lojas de discos (ainda mais numa cidade do interior gaúcho). À beira do 3 em 1, éramos caçadores de fugacidades. Praguejávamos contra vinhetas poluidoras, ou locutores que adoravam atropelar o fim da canção. Agora o streaming nos dá o gozo imediato, mas com isso também mata uma parte da experiência, ao suprimir o velho tempo de espera, o tempo da posse, onde o desejo ia se complexificando com outras camadas de significação.
Muita gente fala da crise dos 40, mas acho que não chega a ser crise. Entendo que dos 40 em diante deixamos de fazer questão de acompanhar o mundo e ele vai ficando diferente daquilo que gostamos e estamos tão acostumados. Com 41, minha playlist é basicamente a mesma de 20 anos atrás e vejo o mainstream musical como um fluxo ininterrupto de lixo (Lol!).