1.
A professora dá uma tarefa. Essa é uma das poucas memórias que eu tenho dos seis anos de idade. A tarefa é desenhar algo do qual a gente sinta medo. Lembro dos desenhos dos outros, seres mitológicos, vampiros, dragões, um punhado de animais selvagens, talvez ursos, leões certamente, mais de um leão, jubas riscadas no susto, a boca profunda preenchida de giz preto. E lembro da vergonha brutal de comparar meu desenho com o dos colegas. A professora ri de mim, me coloca no colo. Eu tinha desenhado uma tomada. Uma banal e realista tomada.
2.
Faz poucos anos que virei uma mulher do mato. Não houve uma epifania que eu posso apontar com o dedo, mas algo invisível e espalhado como uma tempestade de pólen. Descobri que as árvores me faziam bem. Com todo o respeito pelas artes plásticas, estou com o filósofo Peter Singer nessa: “Ainda não tive, em nenhum museu, experiências que satisfaçam meu senso estético com a intensidade com que isso acontece quando caminho pela natureza, parando aqui e ali para admirar uma montanha rochosa cujo pico se ergue em meio à floresta de um vale (…)”.
Em agosto de 2021, eu e a Melissa fomos acampar no Yosemite. Trilha exaustiva de 10,3 quilômetros e 673 metros de ganho de elevação, dirige até o camping, monta a barraca na floresta, faz a comida cheirosa no fogãozinho portátil, para um segundo para escutar os barulhos do mato com a noite caindo.
No terceiro entardecer, nosso camping está pontilhado de destroços. Papel alumínio mordido, papel toalha perfurado por garras. Vou explicar como tudo isso aconteceu e explicar meus pensamentos povoados por ursos, que joga um excesso de cortisol no meu corpo, mas por ora, o que interessa é que o cortisol faz com que a gente recolha tudo, entre no carro e saia do Yosemite voando.
3.
O Yosemite é um território imenso e de extremos. Imenso: leva mais de duas horas de carro – em um limite de velocidade relativamente seguro para ursos – para atravessá-lo no sentido leste-oeste. E pelo menos uma hora para chegar no vale a partir de qualquer uma de suas entradas. De extremos: há lugares de natureza quase intocada onde nenhum ser humano chega, e outros densos de turistas tentando cavar um espacinho para uma foto que vai fingir que todos os outros não estavam lá.
4.
Reservar uma vaga em um dos campings do Yosemite é como tentar garantir um ingresso para um show da Taylor Swift, Madonna, Bruce Springsteen. Se a venda online abre às sete da manhã de um dia específico, você precisa estar no site às seis e cinquenta e cinco pronto para clicar. Foi assim que conseguimos a vaga no Horse Camp que, segundo a descrição, era “o camping mais remoto entre os que você pode chegar de carro”.
5.
Desde que moro no oeste dos Estados Unidos, ouço histórias sobre ursos e pumas, sempre a poucos graus de distância, pumas que foram vistos na rua de amigos ou captados por câmeras infravermelho no jardim, ursos que atacaram as compras de alguém quando a pessoa se descuidou e entrou na casa e deixou o porta-malas aberto, esse tipo de coisa. Ao mesmo tempo, você começa a relativizar o real perigo dessas situações porque entende que há pessoas que moram aqui há anos e nunca estiveram frente a frente com nenhum animal desse porte, e assim os avisos nas trilhas alertando para a presença de pumas passam a ser uma espécie de folheto dos procedimentos de segurança de avião: sério que eu preciso mesmo saber descer por um escorregador inflável no meio do oceano?
Hoje em dia, faço trilhas aqui em Mendocino no fim da tarde com os fones de ouvido e não estou nem aí, não fico achando que vou encontrar as pernas musculosa de um felino de repente, tudo o que vejo são coelhos assustados, às vezes uma raposa, alguns esquilos e só.
6.
“Podem ursos e humanos coexistir?”, pergunta um artigo publicado na The Atlantic. O texto parte de um caso ocorrido no Arizona – um urso morto pelo Game and Fish Department do estado, órgão que lida com a vida selvagem – para discutir a tensa convivência entre humanos e (outros) predadores. Embora cada estado tenha suas próprias regras, em geral animais como ursos e pumas são mortos não porque atacaram alguém, mas apenas porque chegaram perto o suficiente das pessoas. Segundo o artigo, a agência federal responsável por matar esses animais – os dados são de 2014 – eliminou em um ano 305 pumas, 322 lobos, 580 ursos-pretos, 796 linces, 1.186 raposas e 61.702 coiotes.
Alguns acreditam em uma solução menos mortífera, a relocação dos animais para outras áreas, mas a ideia é totalmente hipócrita e descolada da realidade: cada vez mais, as pessoas se mudam para perto de lugares de natureza selvagem, há um valor nisso nesse país; para onde, portanto, relocar ursos, se há séculos nos apoderamos do seu habitat?
7.
Antes de encontrarmos as evidências de que um urso-preto havia estado em nosso acampamento, tínhamos sido metralhadas por advertências: um e-mail do parque anunciando que, especialmente em dois campings – o nosso era um deles –havia active bears nas redondezas (adoro essa expressão, active bear, fico imaginando um urso todo sarado com roupa de ginástica tirando selfie no espelho da academia); a guarda-florestal, na entrada do camping, mencionando de novo os active bears; o vulto concurda de um urso que avistamos na estrada, não muito longe de onde estávamos dormindo; as recomendações por escrito de que absolutamente qualquer coisa com cheiro, incluindo pasta de dente e batom, precisava ser guardada em um armário anti-urso, uma espécie de cofre de um banco muito antigo; que nenhuma dessas coisas poderia sequer ficar dentro do carro, sob o risco do urso quebrar a janela ou arrancar a porta, como vários vídeos do Youtube provam ser verdade; o caso de um urso-cinzento (uma espécie mais violenta), no Colorado, que recentemente havia matado uma ciclista que dormia em uma barraca; o filme do Werner Herzog, que nunca tive coragem de assistir; o urso que foi beber água quando estávamos na beira do rio Merced, no vale do Yosemite, e que causou uma comoção entre os visitantes, que alertaram uma guarda-florestal, que disse para todos se afastarem e deixarem o animal em paz e manterem suas comidas ao alcance das mãos, sempre manter qualquer comida ao alcance das mãos, porque, se o urso percebe o humano como uma fonte de alimento, o parque seria obrigado a matá-lo.
8.
Não dormi bem em nenhuma noite no Yosemite. Ficava ouvindo os barulhos, dava para ver que havia animais se mexendo, um farfalhar de folhas, um chão pisado. Do outro lado do camping, no meio de uma das noites, alguém tocou um desses alarmes de bolso para afastar ursos.
Não era um bom presságio. E como eu ia saber que eu não estava exalando algum tipo de cheiro, qualquer cheiro, obviamente não identificável por um nariz humano, que tem um dos piores olfatos dos quais se tem notícia em todo a subclasse dos mamíferos?
De maneira que, quando chegamos num fim de tarde e vimos os destroços do urso – sim, deveríamos ter colocado o rolo de papel toalha no cofre –, não tive dúvida de que queria sair dali. Houve uma pequena discussão conjugal. Melissa não queria ceder tão fácil à covardia. No lote ao lado do nosso, um casal de mulheres estava se instalando. A presença delas, tranquilas, aproveitando a natureza, deixou nossa reação ainda mais embaraçosa. Eu queria ser a mulher do mato mas, subitamente, eu era de novo a menininha da tomada.
9.
Não tínhamos sinal de celular. Só dirigimos na direção de uma das saídas e, nessa altura, a noite já tinha tomado conta. Atropelei um bicho no caminho, um roedor, foi impossível reagir a tempo, ouvi ele explodir embaixo do pneu e caí no choro.
Depois de uma hora e meia, chegamos a um hotel de beira de estrada, onde tomei um banho quente e liguei a tevê no canal sobre reformas de casas.
Fiz uma playlist para essa edição, e ela não tem qualquer relação com ursos. É só uma seleção de músicas shoegaze e dream pop dos últimos quinze anos, uns dos meus subgêneros favoritos e, ok, talvez elas tenham a ver com a Nevoeiro, porque é o tipo de coisas que eu gosto de ouvir enquanto caminho ou dirijo. A maioria delas parece uma espécie de algodão-doce alucinógeno, que toca em alguns botões da minha imaginação. May 1st é uma das minhas músicas favoritas dos últimos três anos. Colours me dá uma vontade boa de chorar. Dá para ouvir a playlist no Spotify ou no Apple Music.
Na próxima quinta-feira, dia 27, vou enviar um texto exclusivo para os assinantes pagos sobre o misterioso processo de fazer um romance brotar do nada absoluto. Será baseado nas anotações que fiz por mais de ano até chegar à história que eu queria contar em Diorama.
Leitoras e leitores: deixem seu like, seu comentário, e considerem apoiar essa newsletter por R$10 mensais. Colaboradores têm acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura que acontece via Zoom, sempre às 19h. Aqui estão nossas próximas leituras:
8/8 – Notas de um filho nativo, de James Baldwin
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
05/22 – Vencedor da votação entre quatro romances brasileiros contemporâneos*
* a ser definido em setembro
Que news deliciosa, Carol! Parabéns e um abraço de urso :)
Curti bem essa playlist, Carol! Muitos artistas que ouvi ao longo dos anos 2010... E eu vi um show da Japanese Breakfast em SP no ano passado: em palco grande de festival de música, mas tava terminando a tarde, o sol se pondo, um ventinho frio... foi bem bacana. Aproveitando pra perguntar sobre outros dois grandes nomes do dream pop: Galaxie 500 e Beach House - gosta?