1.
Variações desta cena são corriqueiras para muitas mulheres: vou correr em um lugar onde há um certo movimento. Estou usando roupas justas porque a atividade exige. Sigo no meu ritmo de aprendiz de corredora enquanto escuto música nos fones de ouvido. A alguns metros de mim, vejo um cara me escaneando com olhar lascivo. Quando passo por ele, ele me diz alguma coisa que se perde entre o barulho do mar e alguma canção encorajadora dos anos oitenta, de maneira que tudo o que consigo escutar é a palavra “corpo”. Uma hora depois, na saída do supermercado, um outro cara me olha e diz: “você tem um corpo bonito”.
A cena é corriqueira para muitas mulheres, mas não é corriqueira para mim.
2.
Até pouco tempo atrás, eu não sabia que tinha um corpo. Ou: eu tinha decidido não olhar para ele porque não queria que ele fosse olhado pelos outros porque minha vontade primordial era ficar de fora do jogo heteronormativo. Toda a vez que eu colocava um biquíni, me sentia exposta ao nível do constrangimento. Passei a vida inteira negando os códigos ostensivamente femininos, sobretudo porque eles envolviam alguma dose de sofrimento que eu não estava disposta a encarar, e aqui me refiro ao puro e simples sofrimento físico – a primeira cena que me vem à cabeça não me traz como protagonista, mas como espectadora, é uma cena recente aqui na Califórnia rural, estou jantando no pátio de um restaurante por onde circulam meninas indo para o baile da escola, uma delas manca e fala palavrões porque não aguenta mais os sapatos de salto, o vestido é tão longo que os sapatos ficam escondidos quando ela está de pé, o que parece deixar o preço do sofrimento mais alto e inútil, mas o pior de tudo é pensar que o baile ainda nem começou.
Além de passar ao largo do sofrimento físico, cresci evitando os labirintos das tendências e as vozes das sereias cantando no meu ouvido refrões sobre o ideal feminino. Escolher a bolsa certa, a blusa certa, sentar como uma menina, aprender a usar maquiagem, aquilo tudo parecia uma enorme perda de tempo. Eu queria que a vida me levasse a outros lugares, lugares mais distantes e livres. Felizmente, o acaso determinou que, enquanto eu crescia no sul do Brasil, uns meninos de Seattle começassem a fazer um som diferente com suas guitarras distorcidas e suas vozes de quem tinha bebibo diesel. A moda grunge me caiu bem. Camisa de flanela, jeans, coturno. Eu não ia mudar muito desde então.
3.
Estou lendo Perfect Me, da filósofa britânica Heather Widdows. No livro, Widdows defende a ideia de que a beleza se tornou, perigosamente, um ideal ético. Isso quer dizer que a beleza oferece “valores e padrões pelos quais julgamos a nós mesmos e aos outros como moralmente bons e maus”. Corpo magro, preferencialmente com curvas, firme, jovem. Esse seria o ideal. Quando vemos alguém que falhou em sua tentativa de se adequar a esses padrões, segundo Widdows, fazemos julgamentos morais de culpabilidade e responsabilidade: tal pessoa está acima do peso porque é “sedentária”, “só come porcaria”, “não está se esforçando para mudar”. Tal pessoa parece velha – ou melhor, simplesmente parece a idade que tem – porque “se entregou’, porque “não se cuida”. Quando nos olhamos no espelho, o julgamento moral é igualmente implacável. “Queremos aprimorar a nós mesmos aprimorando nossos corpos”, escreve a filósofa.
4.
A ideia mais assustadora de Perfect Me é a de que o indivíduo não escolhe seu ideal de beleza. Esqueça o livre-arbítrio. A pressão social é poderosa demais, você é engolida por ela. Até é possível, segundo Widdows, que possamos escolher um nível pessoal de conformidade ao ideal de beleza vigente, mas esses níveis são limitados pelo domínio desse ideal. “Suspeito que as mulheres que conseguem rejeitar e resistir ao ideal de beleza fazem isso com muito esforço e por um custo muito alto”, escreve a filósofa, “ou então estão protegidas dos custos da não submissão porque pertencem a uma comunidade que endossa algum outro ideal de beleza concorrente ou outros ideais que se opõem ao ideal de beleza dominante. Essas comunidades são cada vez mais raras e, com frequência, privilegiadas.”
5.
Da última vez que estive no Brasil, uma amiga, certa de que estava me oferecendo o argumento final em defesa dos procedimentos estéticos, o nocaute defitivo por botox e ácido hialurônico, disse: “se você não fizer, vai ser a única sem.”
6.
Acho que resisti ao ideal de beleza ao longo da vida por vários motivos. Primeiro, porque fui jovem – jovem é o ideal supremo – em um tempo em que os padrões eram ainda mais restritos do que hoje, meu rosto nunca foi propriamente um rostinho-de-capa-de-revista, minhas escolhas naturais de indumentária nunca foram muito femininas e, assim sendo, seria trabalhoso demais e sofrido demais lutar por um lugar no panteão das deusas cobiçadas. Segundo, porque eu tinha convicções fortes de que aquele era um caminho estúpido e limitador, um caminho que possivelmente me afastaria das coisas que eu queria experimentar e conquistar (e que, aparentemente, os homens podiam obter com muito mais facilidade). Terceiro, porque o custo de não me conformar aos ideias de beleza, no fundo, talvez não tenha sido tão alto: escolhi uma carreira que não me impõe padrões estéticos como outras impõem e, desde os 16 anos, comecei a me sentir mais atraída por mulheres do que por homens, o que fez despencar ainda mais meu interesse pela lógica heteronormativa. Então por que, aos quarenta anos, descubro que tenho um corpo, e que esse corpo até parece estar dentro dos ideais de beleza vigentes, o segredo mais bem guardado da literatura brasileira contemporânea?
7.
É a sentença matadora de Widdows: nossos níveis de não conformidade são limitados pelo peso imenso das pressões sociais. Em uma matéria da New Yorker de 2019, intitulada “A era do rosto de Instagram”, Jia Tolentino relata suas incursões aos cirurgiões plásticos mais famosos de Beverly Hills com um tom sarcástico e de superioridade moral mas, ao final, acaba se questionando sobre sua própria obsessão por maquiagem e confessando a dificuldade de olhar o próprio rosto no espelho depois de percebê-lo tão manipulável, tão passível de correções. Tolentino sai da última consulta-entrevista sentindo algo “muito específico, um tipo de necessidade sem fundo que eu associava com os primeiros anos da adolescência, e que há muito tempo eu não sentia.”
8.
Para Naomi Wolf, em seu célebre O mito da beleza, os ideais de beleza feminina são uma forma de controle social que mantém as mulheres em uma espiral infinita de esperança (o capitalismo agradece) e auto-depreciação. Mas, de acordo com Wolf, podemos dissolver o mito mantendo o sexo, o amor, a atração e o estilo não só intactos, mas mais enérgicos e vibrantes do que nunca. “Não estou atacando nada que faz as mulheres se sentirem bem, mas apenas aquilo que faz com que elas se sintam mal”, escreve. “Todas nós queremos ser lindas e desejadas.”
9.
Até esse ponto da vida, construí minha identidade às margens do mito tanto quanto foi possível. Mas uma coisa que nunca consegui fazer foi escapar da atração que sinto pela beleza feminina ideal. Acho que esse assunto abre uma série de questões que eu ainda nem sou capaz de destrinchar, o poço sem fundo e turvo das nossas sempre complicadas sexualidades. Quando escrevi Todos nós adorávamos caubóis, mais de dez anos atrás, cheguei a colocar na boca da protagonista uma pergunta – sem resposta – sobre o que significava sentir atração por um corpo anatomicamente igual ao nosso. Esse espelhamento sempre me deixou intrigada. Eu acrescentaria agora: e o que significa e quais são as consequências de sentir atração por alguém que tem um corpo igual ao nosso, mas que responde aos ideais femininos de uma maneira totalmente diferente? Nunca vou chegar a uma resposta, mas tenho a impressão de que foi nesse jogo esquisito que acabei descobrindo meu corpo.
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8/8 – Notas de um filho nativo, de James Baldwin
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
O livro do mês de dezembro será escolhido a partir de uma votação entre os colaboradores da Nevoeiro (todos os concorrentes serão livros brasileiros contemporâneos).
Para o próximo mês, também estou preparando um texto exclusivo para os assinantes pagos.
umas das grandes diferenças que comecei a notar entre meu eu-de-20-anos e meu eu-de-30-anos é uma grande falta. demorei um bom tempo para perceber que essa falta era aquele desejo onipresente de ser desejável o tempo todo. não sei bem como a chave virou, mas sinto que agora até tenho certa aversão à ideia das pessoas desejando meu corpo massivamente, dá uma preguiça enorme.
também acho curioso que essa grande preguiça começou bem pequena, há uns anos, coincidentemente quando eu comecei a me relacionar (e desejar) mais mulheres do que antes. quando fico com uma mulher, sinto esse lance do espelho, uma coisa que nunca acontece quando estou com homens, é um movimento emocionalmente diferente. tenho a sensação de que o afeto com os homens tem algo sobre desejar o que eles tem e eu não tenho, enquanto o afeto com mulheres é uma espécie de celebração de reconhecimento, sobre as coisas que nós temos em comum, juntas.
enfim, o texto me deixou pensando sobre essas diferenças tão escandalosas, mas que recebem tão pouco da minha atenção no dia a dia. obrigada por dividir a reflexão :)
Desde que fiz 40 anos ouço muita gente dizer que eu não aparento ter essa idade. Mas por quê? Qual é o problema em ter 40 anos? Ou pior, qual é esse imaginário da mulher de 40 anos?
Morando no Canadá, me sinto um pouco mais protegida dessa cobrança pela juventude eterna. Mas cada ida ao Brasil é um tapa na cara, com as perguntinhas “inocentes”: Por que você não faz uma lipo? Você toma muito café? É que seus dentes não são muito brancos. Amiga, você não acha que passou da hora de encarar um botox?
Uma vez o pai de uma amiga falou que eu engordei, mas a última vez que ele tinha me visto eu tinha 16 anos, ele esperava que aos 40 eu ainda tivesse aquele corpo de 16. Puxado!
O mais doido de tudo isso é que eu nunca senti meu corpo tão potente, tão (to tentando achar um sinônimo para empoderado)... LIVRE! Do que agora, aos 40.
As relações com outras mulheres influenciaram nisso? Sem dúvidas! Percorrer um corpo feminino sem a intenção de comparação, mas simplesmente de contemplação e prazer, e aceitar esse olhar de volta me ajudou a me entender como uma grande gostosa! Tipo você Carol, um brinde às gostosas 🍾🥂✨💖