1.
“Te amo, tu é a coisa mais importante da minha vida. Se não fosse tu, eu já teria pulado da sacada”.
Feliz dia das mães.
2.
Estou nessa sacada em algumas das fotos de adolescente que encontro na casa da minha mãe, quinto andar em uma esquina movimentada de Porto Alegre, um parapeito baixo de alumínio que não ofereceria quase nenhuma resistência ao chamado do vazio. É impressionante que a velha glicínia ainda sobreviva sem nenhuma adubação há praticamente duas décadas, ainda que nunca mais tenha conseguido fazer os cachos lilases brotarem. Está logo atrás de mim. Eu: rosto jovem redondo, blusa curta justa, calça cargo, luzes no cabelo – penso na touca de borracha e a agulha de crochê, lembro bem das mechas descoloridas se enredando quase irreversivelmente, uma das poucas torturas femininas a qual me submeti na vida. Em outras fotografias na mesma sacada e com a mesma idade harmoniosa por fora e tumultuada por dentro, estou de biquíni. Peitão, barriga negativa, olhar confiante que deve ter durado só o tempo do clique. Guardo as fotos de volta na gaveta (eu vivo por ti minha filha, o dia mais feliz da minha vida foi o dia em que eu vi tua cabecinha saindo de…). Fico lembrando de todas as vezes que entrei na piscina de camiseta. 16 anos. 40 agora. Mais tarde naquela semana, minha analista vai dizer que nunca estamos satisfeitas com o corpo do presente: olhamos para trás e pensamos “como é que eu não percebi que era gostosa?”, olhamos para frente e vislumbramos flashes terríveis de decadência física, mas que tal olhar o agora, aproveitar o agora? Obviamente vou pensar que ela tem razão e que isso parece bem budista e que é afinal tudo que tenho tentado fazer nesse ano de 2023.
3.
Todo mundo está preocupado com seus 40 anos. O papo de que os quarenta são os novos trinta me soa como uma fantasia publicitária quando vejo essas amigas e amigos em variadas formas de crise. Atropelados pela velocidade dos tempos. Álcool, remédios, ácido hialurônico. Um amigo me diz que devo me sentir um pouco preservada disso porque moro num lugar que muda de forma mais lenta (uma cidade rural da Califórnia, para quem acaba de chegar nessa newsletter), mas é pisar em Porto Alegre que começo a questionar a permanência ou impermanência das rugas na minha testa. Porque estamos todos nostálgicos ou grisalhos ou sem dinheiro ou cheios de bioestimulador de colágeno, vamos nesse tal Bar Osvaldo ouvir velhos hits indies. As pessoas fazem comentários sobre outros tempos, outras fases de suas vidas. Se eu raspar com a unha essa cena, vou chegar ao início dos anos 2000, talvez aos anos noventa. O banheiro é um pouco mais limpo. Alguém grava uns segundos de uma música do Placebo para outro alguém que já foi embora.
4.
“Tu precisa te mexer.”
“Eu fico bem sentada na cama.”
“Tu não pode achar que essa é uma boa postura.”
“Fico encostada em três travesseiros.”
“Quantos anos tem esse colchão? Trinta?”
“Eu não quero trocar o colchão. Não me estressa, filha, não me fala em problema.”
5.
Comecei a correr no fim do ano passado. Nos primeiros meses, ficava um pouco contrariada pelo fato de estar substituindo minhas caminhadas pela corrida; não havia tempo para tudo na rotina. Caminhar sempre me ajudou a organizar ideias, ter insights, manter o equilíbrio emocional. Nos treinos de corrida – enviados por uma treinadora de Porto Alegre –, eu precisava ficar de olhar o tempo todo no cronômetro, nos batimentos cardíacos, no pace. Não era possível pensar em outra coisa. A motivação para aquilo vinha do fato de eu estar fazendo algo pelo meu corpo e pela minha futura mobilidade. Investir agora para não ter problemas depois. Com o passar do tempo, começou a haver outro ganho, talvez a tal endorfina, mas que poeticamente posso chamar de um boost de vaidade com lampejos de juventude. Eu era foda, eu estava correndo a 10 graus entre pinheiros enquanto ouvia Bon Jovi (She says, "We've gotta hold on to what we've got / It doesn't make a difference if we make it or not).
6.
“Com quem tu vai sair, filha? Que horas tu volta? Onde vocês vão? Atende, por favoooor! Não estou nada bem!”
Repita por 25 anos.
7.
Calhou de eu estar em Porto Alegre quando recebi meu mapa astral. É bem impressionante o nível de acerto do negócio, e me faz pensar que já está na hora de eu aceitar os mistérios da vida, a mágica, o inexplicável (embora a astrologia seja um tipo de mágica com bastante método). Não ser tão inflexível, aliás, é o primeiro conselho na interpretação do meu mapa.
8.
“Urano na casa 4. O rebelde Urano nesta posição é provocador de constantes atribulações quando o assunto é dinâmica familiar. A relação familiar pode ser objeto de tensão ou de transformação e até de ambas as sensações. Você é a pessoa que veio revolucionar sua família, se tornando o agente libertário dos padrões repetitivos presentes no seio familiar.”
9.
Um dia antes de vir a Porto Alegre, corri uma prova de 10km na Avenue of the Giants, uma estradinha cênica entre sequoias-vermelhas embrulhadas no nevoeiro da manhã, no norte da Califórnia. Fiquei conferindo o Apple Watch de tempos em tempos, mas também consegui relaxar o suficiente a ponto de pensar em outras coisas. O ambiente dava uma certa dimensão de ancestralidade, mesmo com as estações de água e os cartazes engraçadinhos (todo esse esforço para ganhar meia banana?). Pensamentos sobre ter 40 anos e sobre o absurdo de ter chegado ali – quem poderia imaginar sua própria jornada? – saltavam na minha cabeça. Cruzei a linha de chegada ouvindo No Doubt. So don’t blow it. Don’t blow it. Ganhei minha meia banana.
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5/6 – Kentukis, de Samanta Schweblin
5/7 – Alvo Noturno, de Ricardo Piglia
8/8 – Notas de um filho nativo, de James Baldwin
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
Me encho de carinho e nostalgia quando vejo gente reflexiva porque chegou aos trinta, aos quarenta, aos cinquenta. Da véspera dos sessenta, posso dizer: 'você se acostuma' ou 'presta atenção aos seus septênios, eles são muito mais significativos'. Bjos
Por aqui é durante a corrida que resolvo uma porrada de problemas :)