Nevoeiro #13
fotografias e o envelhecimento; Alice Munro; hotéis sujos (+ cupom de desconto).
1.
Em 2004, Jonathan Franzen escreveu para o New York Times sobre o livro de contos Runaway (Fugitiva), de Alice Munro. Era uma resenha esquisita que dizia basicamente que ele não faria aquela resenha, o que talvez hoje a gente possa entender como sexismo e uma necessidade histriônica de bancar o sujeito diferentão que transborda senso de humor – Franzen ainda era o melhor amigo de David Foster Wallace, não o escritor de depois, empenhado em escrever o Grande Romance Americano em um computador sem acesso à internet. Lá pelas tantas, na tal resenha-que-não-é-uma-resenha, Franzen refere-se às fotografias de Alice Munro. “Suas fotos de orelha a mostram sorrindo agradevelmente, como se o leitor fosse um amigo, em vez de exibirem aquele tipo de carranca lamentável que demonstra uma intenção literária realmente séria.”
2.
Semana passada, eu estava indo para um evento realmente sério em Montreal, Canadá. O voo partiria às oito horas da manhã do aeroporto de San Francisco, a quatro horas da minha casa, então eu precisava passar a noite ali perto. Entrei no aplicativo do Booking, ordenei os hotéis por preço e escolhi um dos três mais baratos. Quando chegamos – eu e Melissa –, reconhecemos o hotel e fomos tomadas por um lampejo de nostalgia: nós duas arrastando malas enormes até o ponto mais distante da recepção, rindo muito, navegando ainda por aquela lua-de-mel típica da imigração de classe média. Corte seco para a noite de 2023: o mesmo Travelodge sufocado pelo barulho da freeway, a escada de cimento parecendo mordida por uma criatura mezosoica, pessoas tomando um ar apoiadas no gradil com o olhar morto dos vícios e da desesperança. O quarto 666 tinha números grandes, pretos e um pouco tortos, totalmente fora do esquema de sinalização do hotel.
Dentro do nosso quarto – o 658 –, aquele ranço de carpete que já viu tudo. Toalhas com cabelos de outros hóspedes. Tentei dormir, mas escutava tudo o que acontecia no quarto ao lado. A vizinha falava português. Começou a cantar “Majestade o sabiá”. Esta viagem dentro de mim foi tão linda / Vou voltar à realidade pra este mundo de Deus / É que o meu eu, este tão desconhecido / Jamais serei traído, este mundo sou eu.
3.
Nunca gostei muito de me ver em fotos. Li num livro outro dia – e agora a referência se perdeu completamente – que, ao longo da História, pessoas foram homenageadas com estátuas e retratos que justamente revelam a parte do corpo que o próprio sujeito não vê: o rosto e os ombros. Existimos no mundo sem ver o próprio rosto. Mesmo que a gente se veja todo dia no espelho do banheiro, múltiplas vezes e em múltiplos banheiros, parece haver um distanciamento entre esse ato solitário e íntimo e o ato de efetivamente estar no mundo, rodeado de pessoas. As fotos revelam esse “eu” que passeia por aí, e há sempre um assombro nisso.
Porque sou escritora, sempre preciso das famosas e temíveis “fotos de divulgação”. O tempo passa e você precisa renová-las, mostrar o tempo passando no rosto, seria ridículo demais estampar uma fotografia de quem você já não é. Acho essas sessões de fotos difíceis. A última foi um lento desastre. O fotógrafo pediu que eu ficasse séria. Ele gostava de seriedade. Talvez a editora também goste da “intenção literária realmente séria”. Eu quero sorrir. Além disso, acho que eu não estava preparada para me ver com quarenta anos.
4.
No primeiro dia em Montreal, tirei a roupa e me olhei no espelho. Levantei os braços e vi que estava cheia de marcas vermelhas. Picadas. Já tive uma experiência horrorosa com pulgas – naquela mesma casa da edição passada, foram tantas histórias que tive que omitir essa parte –, mas aquilo ali que eu estava olhando no espelho parecia seguir um padrão diferente: as pulgas atacavam sobretudo as pernas e a cintura. Aquilo era outra coisa. Dezenas de mordidas ao redor dos cotovelos.
Bedbugs, essa temida praga do Hemisfério Norte. No Travelodge. Corri para a farmácia, comprei pomada e antialérgico, morrendo de nojo. Em algumas horas, ia almoçar com o cônsul em um palecete do século dezenove.
5.
No conto “Poderes”, Alice Munro descreve o assombro de uma personagem que subitamente se vê refletida na vitrine de um café:
“E atrás daquelas palavras rabiscadas havia uma criatura de aparência raivosa, enrugada, quase chorosa, com um cabelo fino afastando-se de suas bochechas e de sua testa. Um cabelo pálido, seco, castanho-avermelhado. Use sempre uma cor mais claras do que o de sua cor natural, dizia a cabeleireira. A cor do cabelo dela era escura, marrom-escuro, quase preto.
Não, não era. A cor dela agora era branco.
(…)
Durante os últimos dez ou quinze anos ela certamente tinha se dado ao trabalho de observar seu próprio rosto numa luz desfavorável para poder ver melhor os efeitos da maquiagem, ou decidir se já tinha chegado a hora de começar a pintar o cabelo. Mas ela nunca tinha tido um baque como esse, um momento em que ela não via apenas trechos problemáticos antigos e novos, ou alguma decadência que não podia mais ser ignorada, mas uma completa estranha.
Alguém que ela não conhecia e não gostaria de conhecer.”
6.
Fui para Montreal a convite do festival Metropolis Bleu, com apoio do consulado brasileiro. Também tive um evento na universidade McGill. É muito legal poder falar da minha obra, um sinal incrível de reconhecimento – a menina publicitária que eu fui jamais poderia imaginar isso – mas, ao mesmo tempo, acho esquisito estar nesse papel institucional. Me pergunto como se sentem os escritores que divulgam incansavelmente seus passos de Pessoa Jurídica e fazem do seu Instagram uma espécie de coluna social cultural, como se aquilo fosse o melhor que tivessem a dizer sobre si mesmos.
7.
Na volta de Montreal, passo dias lendo coisas sobre Alice Munro, marcando trechos dos seus contos, olhando no mapa a província de Ontário, região onde Munro nasceu em 1931 e onde se passam grande parte das suas narrativas. Escuto uma entrevista que ela deu em 2004 em um restaurante da cidadezinha onde morava na ocasião. Tenho dificuldade em entender o nome do restaurante. Quero saber se ele ainda existe, como se isso fosse me levar a Munro. Consigo encontrar no Google Maps depois, Paddy O’Neils Restaurant Pub, mas as fotos de peixe frito não me trazem nenhuma conexão iluminada. Munro ganhou o Nobel em 2013 e, depois disso, parece ter desaparecido. Sobre sua decisão de não escrever mais, comentou, na época: “Acho que foi a ideia de que, como escritora, você passa a vida inteira sendo uma observadora e depois tenta fazer um registro do que observou, e aí pode pensar, quando ficar mais velha — ou uma velha, como eu — que sentiu falta de ser uma pessoa comum.”
Meu livro de estreia, Pó de parede, vai ganhar uma edição especial de quinze anos, que já está em pré-venda. Assinantes da Nevoeiro, além do desconto normal da pré venda (de R$ 59,90 por $49,90), ainda acumulam mais 10 REAIS de desconto usando o cupom NEVOEIRO. O livro pode ser comprado na loja virtual da Dublinense.
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4/5 – A fugitiva, de Alice Munro
5/6 – Kentukis, de Samanta Schweblin
5/7 – Alvo Noturno, de Ricardo Piglia
8/8 – Notas de um filho nativo, de James Baldwin
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
1- Engraçado, ontem estava falando com minha psicóloga sobre o desconforto que não deixo de sentir (e que era muito maior na infância) quando eu tiro fotos em ocasiões sociais. Mesmo selfies eu tiro muito pouco. Agora leio sua newsletter e o terceiro tópico, em especial, bateu forte. Que coisa...
2- Impossível não lembrar do Cormac McCarthy, que, imagino, sempre foi avesso a longas promoções de seus livros; e do Thomas Pynchon, cuja única foto pública é aquela de marinheiro com 18 anos...
3- Promessa para mim mesmo: este ano leio Alice Munro.
Gostar é pouco. essa é minha newsletter favorita! :)