1.
Eu tenho uma história. Talvez seja a história mais sinistra do meu repertório autobiográfico, embora não envolva nenhum perigo real. Era apenas um lugar – e uma mulher – que parecia um ímã para coisas meio sombrias, uma teia grudenta só pacientemente esperando. Isso tudo aconteceu em 2019, quando eu e a Melissa nos mudamos para uma cidade vizinha à Mendocino chamada Little River, população 176 habitantes. Little River fica a cinco minutos de carro de Mendocino (população 1.090) e vinte de Fort Bragg (população 7.273). Nos mudamos para lá porque precisávamos sair da casa que amávamos, e é extremamente difícil achar algo para alugar aqui, primeiro porque se trata de um lugar pequeno, segundo porque grande parte das casas serve a turistas da Baía de San Francisco e do Vale do Silício que querem brincar de cabana. A casa parecia ótima no início, íamos mobiliá-la do jeito que queríamos, eu tinha uma varanda ensolarada e planos de começar um novo livro, e a dona, que morava na casa maior logo ao lado e estava naquele momento adotando duas crianças em Uganda, dava a impressão de ser uma boa pessoa.
2.
Little River passa na estrada mais rápido do que você consegue dizer “olha lá”. Tem um hotel luxuoso de mais de um século com vista para o mar onde eventualmente acontecem campeonatos de mahjong promovidos pelo Rotary; uma praia de cascalho e um parque estadual lindo e úmido; um posto e mercadinho com bombas de gasolina tão antigas que é difícil saber como se faz para operá-las; de resto, uma estrada que vai na direção contrária ao oceano, pontuada de casas em terrenos ora ensolarados, ora escondidos sob pinheiros. A primeira delas, chegando pela rodovia que costeia o mar, era a nossa.
3.
As pessoas costumam me perguntar porque vim morar na relativamente isolada costa norte da Califórnia. Vou dar uma resposta longa e sinuosa que nunca dei. No livro The situation and the story, Vivian Gornick discorre sobre como, para se escrever um texto ensaístico ou um memoir, você precisa criar uma espécie de persona intimamente conectada ao seu objeto de análise. Nesse processo, você elimina parte do seu “eu” – ou da sua história pessoal – que de nada servem ao propósito daquele texto. É tudo, em resumo, uma questão de seleção. Como tudo na vida.
Na vida, você também não é um “eu” completo e transparente. Você escolhe iluminar partes, faz isso o tempo todo (“Casei com o homem que casei porque prefiro a versão que ele tem de mim do que minha própria”, escreveu Lynn Darling em um ensaio). Mas você não calça determinadas botas só porque quer se integrar com os outros, ou chocar os outros, ou causar inveja aos outros. O jogo de cena também se dá na frente do espelho: você corta, organiza e seleciona seu próprio “eu”. Para si mesma.
4.
Antes de K. chegar de Uganda com as duas crianças adotadas, o filho biológico e a namorada dele estavam vivendo na casa grande. Dane e Leah, uns trinta anos. Nos convidaram para jantar certa noite. Leah era garçonete num dos restaurantes caros de Mendocino, uma situação que parecia temporária, esses típicos intervalos millennials para pensar na vida e definir rumos. Dane parecia um pouco menos convencional: sua principal atividade era curtir couro – no sentido “colocar (couro, pele) de molho em líquido especial preparado para amaciá-lo e deter a sua decomposição orgânica”. Ficamos mais ou menos próximos. Um dia, nos anunciaram que iriam viajar por um mês, por acaso me interessaria cuidar do Airbnb que funcionava numa parte anexa da casa grande? Acenaram com dólares na minha cara, aceitei.
5.
Era um “eu” que eu gostava: jantar com essas pessoas, estar na cidade de 176 habitantes. Até a esquisitice de curtir couro me parecia atraente, do ponto de vista de observadora. Eu já estava tentando escrever o Diorama na época. Quantos filmes, quantos livros, tinham me levado a ler como “charme decadente” aquele posto de gasolina empoeirado?
6.
A casa grande ficava destrancada. Eu entrava pela porta dos fundos. Havia um piano, e galhadas sobre a lareira. Eu ficava espiando as coisas e depois cruzava a porta dupla que levava à suíte do Airbnb. Começava a limpar, pensando em Lucia Berlin e seu Manual da faxineira. Tentava tirar o melhor daquilo e fazia um processo investigativo do lixo para não deixar destreinado meu lado romancista. Um dia, fui lavar uns copos na cozinha da casa grande – o Airbnb não tinha cozinha, – e encontrei uma trilha de sangue. Começava na sala e avançava cozinha adentro. Fui seguindo a trilha. Então parava logo na frente de um freezer horizontal. Abri. Havia uma coleção de potes de vidro com uma coisa meio indistinguível dentro. Estavam etiquetados. “Cérebro de cervo”.
7.
Apenas dois lugares eram acessíveis a pé a partir da nossa casa: o cemitério e uma trilha que levava para o parque estadual. A memória mais nítida que tenho dessa trilha é dos dias que caminhei ouvindo um podcast sobre a família Hart, um casal de lésbicas brancas que fez o carro saltar de uma falésia com seus cinco filhos negros adotados. A história é horrorosa, e tinha acontecido na costa de Mendocino. Havia filmagens do casal no supermercado que eu frequentava, logo antes de drogarem as crianças para o grande salto. Um altar com ursinhos de pelúcia na beira do mar, alguns quilômetros mais ao norte.
8.
Tudo foi ficando estranho. Do outro lado da rua, morava uma senhora que chamarei de J. Tinha um cachorro e várias chinchilas. Cuidava de algumas coisas para K. enquanto K. estava na África. J. tinha uma linguagem corporal típica dos loucos, e costumava repetir que, caso houvesse um incêndio florestal na nossa rua, ia correr com as chinchilas e o cão para a praia, ficando todos imersos no Pacífico até que o socorro chegasse. Umas semanas depois desse episódio do sangue, vi J. atravessando a rua armada de balde e esfregão na direção da casa grande. No dia seguinte, encontrei-a por acaso e comentei o fato. “Não era eu”, disse.
9.
“Fico interessada na minha própria existência”, escreve Vivian Gornick, “apenas como um meio de penetrar na situação em questão. Criei uma persona que consegue encontrar a história no meio da maré. Em um estado sem mediação, eu me afogaria.”
10.
Quando K. chegou de Uganda, eu já não cuidava mais do Airbnb. Era uma mulher branca de dreads e extremamente grosseira. Tinha algo de transtornado no olhar e no jeito de falar, mas não o transtorno inocente e quase cômico da nossa vizinha. Era algo mais sombrio. Logo descobri que ela estava dando aula na escola de yoga de Mendocino. A Califórnia tem esse grande flerte com as religiões orientais, o misticismo, os experimentos contraculturais, tudo que é tido como alternativo parece interessar esse lugar, e há um lado muito bonito disso, mas o lado sombrio está logo ali, no charlatanismo cotidiano e, mais radicalmente, em figuras diabólicas como Charles Manson e Jim Jones. K. era essa metade escura da Califórnia. Eu tinha chegado perto demais.
11.
O fim chegou quando K. comprou um galo. O galinheiro ficava a poucos metros da nossa casa. O galo começava a cantar às quatro da manhã. E não parava durante o dia. Foram semanas daquilo até que decidimos falar com K. delicadamente, no jardim. Dane estava acocorado no chão mexendo numas peles. K. foi extremamente violenta e nos convidou a ir embora da casa. Durante todo o tempo, Dane sequer ergueu a cabeça. No galinheiro, não havia nenhuma galinha. Apenas o galo. Uma das frases de K. era: “essa é uma terra produtiva!”
12.
Saímos de Little River em fevereiro de 2020. Encontrei algumas vezes na cidade a mulher que alugou a casa logo depois de nós. Estava mais do que traumatizada com a experiência com K. e também deixou o lugar assim que pôde. Perguntei do galo. Contou que, certa noite, tinha sido atacado por algum animal selvagem. Talvez uma raposa, talvez um urso. K. encontrou-o ainda vivo. Pegou ele nos braços e, em vez de libertá-lo daquela agonia, ficou observando o estado irreversível do animal.
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Precisei parar pra pesquisar sobre o caso da família Hart. Não fosse isso, teria lido tudo num gole só. Fantástico.
Quero mais dessa história!