1.
Uma viagem sempre tem um pedaço ruim. Um dia em que tudo dá errado naquele lugar de bosta e a culpa pode não ser do lugar, mas do cansaço, de uma expectativa irrealizável, do aspecto infinita highway e dos mallzinhos cor de areia que me mergulham num déjà vu constante, cadê o centro dessa cidade, tostam um presunto cru em cima de um pão e chamam isso de pizza. O mar não chega a ser um consolo porque o vento sem trégua no céu azul perfeito me lembra um romance do Coetzee em que o personagem vai gradualmente enlouquecendo com as rajadas. Consigo entender bem.
Meu pedaço ruim dessa viagem se chama Ventura, onde eu e a Melissa passamos a noite num motel com mobília detonada e obscenidades escritas no batente da porta do banheiro – cum harder – porque, no dia seguinte, iríamos pegar um barco para uma ilha e acampar nessa ilha onde não há absolutamente nada a não ser natureza imaculada. Mas estava ventando demais e as pessoas que tinham ido acampar no dia anterior sequer puderam ser buscadas pelo barco, o que parecia um pesadelo. Desistimos da ilha e eu só ficava pensando por favor que isso não estrague minha relação com a música Ventura Highway porque eu me amarro em soft rock e entendo que tudo é uma questão de momento e ponto de vista.
2.
Naquela altura, faltavam umas vinte páginas para eu terminar minha releitura de Dharma bums, do Jack Kerouac. Quando Kerouac lançou esse livro em 1958, um ano depois de On the road, a revista Time disse que ele poderia muito bem se chamar On the trail, uma verdade bem espirituosa em uma resenha que detonou o romance de cabo a rabo. Em On the road, Kerouac estava fascinado por Neal Cassidy – Dean Moriarty no livro –, esse rebelde frenético, espécie de James Dean de Juventude transviada, e as estradas americanas eram obviamente o cenário. Em Dharma bums, o muso da vez é Gary Snyder – Japhy Rider no livro –, um poeta budista e adorador da natureza. O cenário são as trilhas, uma montanha intimidadora, uma solitária torre para vigiar incêndios florestais. Gary Snyder antecipou a contracultura dos anos sessenta, a preocupação com o meio-ambiente, o interesse do ocidente pela espiritualidade oriental, a vontade por trilhas e montanhas e cabanas no meio da floresta.
3.
“Encolhi-me ainda mais na beirada”, escreve Kerouac, descrevendo a escalada no monte Mattlehorn “e fechei meus olhos e pensei ‘Ah mas que vida é essa, para que nascer afinal, só para que nossa pobre carne seja exposta a horrores assim tão impossíveis quanto montanhas enormes e rochas e espaço vazio’, e com horror me lembrei o famoso ditado zen, ‘Quando chegar ao topo da montanha, continue subindo’, e o ditado fez meus pelos se arrepiarem”.
4.
Em Dharma bums, dá para ver que Kerouac está tentando desesperadamente mudar de vida. O esforço é comovente. Ele faz tudo o que Rider o aconselha a fazer, medita, sobe o Mattlehorn, passa 60 dias sozinho em uma cabana observando possíveis focos de incêndio, mas nunca nos convence de que mudou realmente, de que se livrou de todo aquele desespero e falta de sentido que carrega com ele. O entusiasmo de On the road desagua na calmaria de Dharma bums e acaba no abismo de Big sur. A pergunta que fica: até que ponto podemos mesmo mudar?
5.
Foi na pandemia que eu e a Melissa começamos a acampar. Não custa lembrar rapidamente que, em outra era, eu fui a pessoa que votou em um resort de águas termais como destino de viagem de fim de ano da turma do colégio (a outra opção, a que exalava juventude, era a Ilha do Mel). Eu vivi uma fase velha em algum ponto da adolescência. Comecei a ouvir jazz, ia a cafés, aprendi a jogar pôquer. Foi depois que rasguei as calças jeans e fiquei enfeitiçada pela Courtney Love. Uma rebeldia ponderada.
Gastamos todo o dinheiro dos cheques de estímulo do Biden em equipamento para fazer trilhas e acampar, o que provavelmente nos torna responsáveis pela volta da inflação nos Estados Unidos. Barraca, saco de dormir, fogão portátil, cooler, panelas minúsculas, mosquetões, sapatos de rio, bastões de caminhada, mochilas, comida desidratada, um paninho especial para xixi no mato. Fomos a parques nacionais e estaduais, nosso rolo de papel toalha foi mastigado por um urso – talvez uma história para mais tarde –, dormimos de casaco na umidade brutal da floresta de sequoias-vermelhas. Algumas vezes, preciso confessar, escapamos para um motel de beira de estrada, mas isso nunca diminuiu nosso entusiasmo, nunca aniquilou a vontade de estar na natureza. Somos quem podemos ser.
6.
Terminei de ler Dharma bums na beira de uma piscina em Palm Springs, e uma foto disso seria constrangedora demais. “Vi sessenta pores-do-sol passarem por aquela montanha perpendicular. A visão de liberdade da eternidade era minha para sempre”. Ilusões temporárias.
7.
Os personagens-narradores de Kerouac nunca demonstram ter tanta força e energia vital quanto a que vemos em Dean Moriarty e Japhy Rider. Isso não é algo incomum na literatura. Na verdade, eu diria que é a regra: quem observa geralmente coloca a potência no outro, no observado. Há um movimento de admiração, quase uma idolatria, enquanto o olhar para si mesmo é carregado de algum nível de auto-depreciação. Pense em Lenu e Lina da tetralogia napolitana de Elena Ferrante.
Pessoas introvertidas e observadoras têm mais chance de se tornarem romancistas do que aquelas que vivem sob a influência do mantra “é melhor queimar do que se apagar aos poucos”, mas eu me pergunto se não dá pra gente pensar além disso, ir além da literatura, pensar que no mundo real também o Outro tende a parecer mais interessante que o Eu porque está envolvido em mistério. Isso faz sentido especialmente na juventude, quando atribuímos mais valor à intensidade. Tive algumas Neal Cassidys na minha vida. Não sei se elas eram tão incríveis quanto pareciam para mim. A verdade é que esse olhar encantado é sempre reverente demais – você pode ver mistério e profundidade onde não há – e, ao mesmo tempo, extremamente redutor: você só está vendo o punhado de coisas que quer ver, não a pessoa de verdade.
8.
Uma das minhas Neal Cassidys frequenta agora os Narcóticos Anônimos. Da última vez que nos encontramos por acaso na rua, alguns anos atrás, ela parecia ter perdido o brilho de antes. Me despedi depois de um tempo e fui caminhando para longe, tentando enxergar na minha cabeça como ela era antes, naquela época em que não tirávamos tantas fotos como agora. Mas logo deixei pra lá, começando a me sentir culpada por cultuar sua velha versão e fazer pouco caso do que ela tinha se tornado. Parece que eu ainda caía na armadilha de romantizar aqueles anos e aquelas pessoas que não eram eu.
* Se você gosta dessa newsletter, dê like, divulgue e considere apoiá-la por R$10 mensais. Assinantes pagos têm acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura que acontece via Zoom, sempre às 19h. Em 4/5, falaremos sobre A fugitiva, da maravilhosa Alice Munro. Em 5/6, será a vez de Kentukis, de Samanta Schweblin. Em 5/7, discutiremos Alvo noturno, de Ricardo Piglia. Acompanhe a newsletter ou meu instagram para saber dos próximos livros.
Muitas referências a engenheiros do Havaí ou impressão minha? O ponto sobre as versões dos outros pegou aqui...
Epa... Continuando ..saber canal para contribuir $$. Não achei.
E ... formulei algumas perguntas sobre A Favorita (genial, como sempre). Quero encaminhá-las. Na hora, no chat, sei lá. Beijos