1.
A trilha é uma antiga estrada de lenhadores, serpenteando junto com o rio que corre uma dezena de metros abaixo, hoje parado como vidro. Em vinte minutos, chega-se às sequoias-vermelhas por esse caminho traçado pelo homem, uma linha caminhável que corta o cânion íngreme, as sequoias finas perto umas das outras como não deveriam estar: em algum lugar por aqui, uma placa educativa compara a realidade pós-extrativista com a restauração ideal do bioma – árvores robustas e mais distantes –, uma coisa que levará algumas centenas de anos para acontecer. Hoje caminho sem música, ouvindo minhas solas triturarem o cascalho fino e minha mochila roçar o casaco de náilon. De vez em quando, brinco de parar de repente e então o silêncio parece ter um peso e algum tipo de pulsação. Há cantos de pássaros longínquos que ainda não sei identificar. Retomo a caminhada e quase piso em uma cobra mais fina que uma mangueira porque subitamente me distraio pensando na Ilha do Mel e no Costão do Santinho, dois lugares que nunca visitei.
2.
A Ilha do Mel, no Paraná, estava na moda durante os anos 90. Meu último ano do colégio foi 1999. Lá por maio ou junho, os colegas começaram a falar de Ilha do Mel como destino para uma possível viagem da turma. É preciso dizer que essa era uma turma toda desconjuntada, a junção de três turmas da tarde (D, E e F) que virou a quarta turma da manhã e que depois ainda recebeu a adição de alunos-problema vindos das (aos meus olhos) harmônicas e felizes A e C.
Ilha do Mel. Quem defendia a ideia eram os guris com os quais eu não simpatizava nada, os macho-alfas de bermuda de surfista e pele bronzeada e bons no futebol e que faziam bullying com os quietinhos, os de óculos, os estudiosos. Não sei se foi por isso ou porque, naquela época, eu vivia dentro de um mundinho estreito e hiper protegido, mas a ideia de viajar para a Ilha do Mel com a turma – esse arremedo sem liga e sem química – me parecia assustadora. Então tomei uma decisão estranha: me aliei aos colegas que queriam ir para o Costão de Santinho.
Tínhamos 17 anos. Deveríamos ser livres e destemidos. Por que cogitar um ambiente tão controlado como o de um resort, por que se sentir atraída por conforto e uma piscina enorme com luzes? Por que, em última análise, desejar algo que nossos pais desejariam?
Aquele foi o mesmo ano em que eu e uns meninos começamos a jogar pôquer por dinheiro no recreio. Os mesmos que queriam ir pro Costão do Santinho. Imaginávamos a vida adulta como algo meio James Bond.
3.
“Não consigo acreditar que você vive off the grid. Sem ofensa, mas sempre achei você super urbana”. Quem comentou isso foi um ex-colega de faculdade que se mudou para Londres há muito tempo – a coisa que mais me lembro do seu período inicial na ilha é que ele só comia ravióli enlatado.
Pouca gente entendeu que todos aqueles meus passeios de carro até a zona sul de Porto Alegre no começo dos anos 2000 significavam uma vontade latente de fugir. De criar uma narrativa pessoal do zero. Nem eu entendia isso muito bem.
4.
As últimas coisas que comprei foram: um binóculo, uma calça de neoprene, o livro de um monge budista.
5.
Traduzir o Segredo da Força Sobre-Humana, da Alison Bechdel, a respeito do qual falei na última Nevoeiro, me fez ter vontade de ler sobre budismo. E talvez também a convivência com M., que parece ter levado a coisa a sério e chegado aos seus 87 anos com um equilíbrio psíquico legítimo e admirável. Além disso, há a abertura iminente de um novo calendário, quando somos acometidas por uma forte vontade de nos tornarmos mais sábias. Planos de sabedoria: vou ler mais filosofia, vou reservar um tempo para os romances difíceis, não cairei em armadilhas do mercado, não cairei no imediatismo.
De maneira que entrei na livraria local e, pela primeira vez, me aproximei da temida seção das religiões, na verdade ocupada majoritariamente pelo budismo porque, bem, é a Califórnia. E então peguei na mão o livro de um certo Yongey Mingyur Rinpoche, In love with the world. Gostei do título. Gostei também do fato de que a capa ostentava um retrato em preto e branco do autor de perfil, sem sorrir, de um jeito meio badass (mais tarde, em uma busca na internet, eu encontraria outros livros em que os retratos de Rinpoche exalam alegria vibrante, o que, por eu entender como algo falso e símbolo do mercado de auto-ajuda, eu teria descartado na hora).
Como se não bastasse, In love with the world tinha um blurb do George Saunders, excelente escritor e, até onde eu sei, um ótimo ser humano. “Esse livro tem o potencial de mudar a vida do leitor para sempre”.
6.
Não sei vocês, mas acho acalentadora a ideia de comprarmos um livro ao acaso e nos deslumbrarmos com ele. Com frequência, não é o que acontece: os últimos livros que comprei por causa do título ou da capa foram decepcionantes e inclusive cruciais para que eu traçasse o plano de ser mais “seletiva” no próximo ano. Mas confesso que a ideia da experiência transformadora por acaso é muito sedutora, e sempre sinto essa energia pulsando quando entro numa livraria.
7.
Com o binóculo novo, um upgrade do que compramos ao nos mudarmos para Mendocino, fui olhar as baleias. Mais do que os jatos d’água, dessa vez consegui ver o rabo, os corpos pulando, os pássaros em volta. “Gosto tanto de saber que elas tão lá”, disse a Melissa uma vez. E, quando estávamos na loja, eu meio interessada em uma espécie de suporte que permitiria tirar fotos do que veríamos pelo novo binóculo, ela foi enfática: “Não. A graça é que só dura aquele momento.”