1.
Eu e Anya caminhamos no estuário do Big River, açoitadas pelo vento. É o inverno mais chuvoso que a Califórnia viu em muito tempo. As cores da paisagens estão adormecidas e, por todo o lado, há pedaços de árvores que desceram pelo rio e ficaram presos na areia. Pedaços novos e pedaços que vivem na praia há anos, como em um conto da Alice Munro. Conheci Anya um dia no meio de uma trilha na floresta, quando eu e Melissa paramos para olhar uns cogumelos e ela parou para olhar o que estávamos olhando; as pessoas de 30-40 anos são a minoria em Mendocino (as da faixa dos 20 quase não existem), então trocamos telefones esperando que a amizade desse certo.
Estamos agora há meio quilômetro do mar. Toco na água salgada do rio com a ponta dos dedos enquanto Anya tira a roupa sem reclamar dos nove ou dez graus daquele fim de tarde. Deixa a pilha de roupas sobre um tronco e vai entrando no rio com seu maiô que lembra as fotografias da minha avó sorrindo em uma praia de Alexandria, Egito, anos antes de ser forçada a deixar o país.
“Pode marcar”, ela diz, só com a cabeça para fora da água, e então eu ligo o cronômetro e nós ficamos conversando, eu do lado de fora, ela do lado de dentro. Anya não anda muito bem, e as imersões diárias de cinco minutos no rio gelado são, segundo ela, o seu anti-depressivo. Digo a mim mesma que gosto das soluções daqui. Talvez soluções não seja a palavra certa. Gosto das tentativas daqui.
2.
Há um grupo de mulheres que entra no rio quase todos os dias. A inspiração veio de Anita, uma mulher de 86 anos que já vinha fazendo isso há muito tempo, só de maiô. As nadadoras compraram roupas térmicas, ponchos forrados para a saída. O grupo se tornou uma comunidade bonita que se encontra para celebrar a vida, a relação com esse estuário, que assa cupcakes e brownies e come de pé gargalhando, as mulheres encostadas em seus Subarus e vans, seus cabelos brancos compridos cheios de sal. A idade média deve ficar pelo sessenta, e falar agora nesse texto sobre etarismo seria matar essa imagem, que é a de uma vida normal, essas professoras e enfermeiras e aposentadas, uma vida que pode existir sem a gritaria das redes sociais, submergir na água gelada, se divertir com as outras, fazer o inesperado.
3.
Deve fazer uns dez anos que escrevi um texto para o Blog da Companhia argumentando que ler um romance era a maior das transgressões diante da velocidade insana da vida contemporânea. Continuo acreditando nisso, que sentar e ler um livro com uma história inventada e sem utilidade aparente é um tapa na cara da sociedade. Existencialmente falando, essa questão da velocidade é pra mim um tema central há muito tempo, nunca me senti confortável com esse ritmo da vida de hoje, não vanglorio jornadas longas e trabalho massacrante. Hoje tenho outras táticas, além da leitura, para desacelerar o tempo, e uma delas é olhar para o ritmo da natureza, tentar entrar nele, aceitar as limitações das estações, observar mudanças graduais na paisagem, treinar o olho para o que é sutil.
4.
Usei a palavra “transgressão” para falar dessa tentativa de desacelerar, mas poderia ter usado “resistência”, que foi precisamente o que fez Jenny Odell em seu livro How to do nothing: resisting the attention economy (infelizmente publicado no Brasil com uma roupagem de auto-ajuda e gestão de negócios, tudo o que o livro não é). “Algumas pessoas gostariam de usar a tecnologia para viver por mais tempo”, escreve Odell. “Para essas pessoas, eu humildemente proponho uma maneira muito mais parcimoniosa de viver para sempre: sair da trajetória do tempo produtivo, de modo que um só momento possa se tornar quase infinito. Como disse certa vez John Muir: ‘Mais longa é a vida que contém a maior quantidade de alegrias apagadoras de tempo”.
5.
Ainda Odell: “Precisamos de distância e de tempo para poder enxergar os mecanismos aos quais nos submetemos sem refletir. Mais do que isso, como argumentei até agora, precisamos de distância e tempo de modo a sermos suficientemente funcionais para fazer ou pensar qualquer coisa significativa. William Deresiewicz fala sobre isso em ‘Solitude and Leadership’, uma palestra para estudantes universitários proferida em 2010. Ao passar muito tempo nas redes sociais, acorrentado ao ciclo de notícias, diz ele, ‘você é mergulhado na sabedoria convencional, marinado na realidade dos outros: para os outros, não para você mesmo. Você está criando uma cacofonia na qual é impossível ouvir sua própria voz, esteja você pensando em si ou em qualquer outra coisa.”
6.
O livro de Jenny Odell termina com ela observando pelicanos. Acho How to do nothing uma preciosidade, e estava empolgadíssima para o lançamento do novo livro Saving time: discovering a life beyond the clock, que comprei ainda na pré-venda (e que, salvo engano, será lançado esse ano pela Companhia das Letras). Li umas 100 páginas, mas minha atenção começou a escorregar. O livro parece menos uma espécie de tratado filosófico, uma postura de vida – como o anterior – e mais uma história resumida e desconjuntada do capitalismo. Uma resenha sobre Saving time na New Yorker me ajudou a entender as possíveis razões de Odell para o novo tom: segundo a resenhista Parul Seghal, algumas críticas negativas sobre How to do nothing apontavam o lugar de privilégio da autora – do tipo “você tem que ser muito privilegiada para ir para uma cabana na floresta pensar na vida” –, o que faz com que Odell, no novo livro, pareça sempre estar na defensiva, alguém que, na tentativa de incluir em sua obra toda a gama gigantesca de pautas sociais do mundo atual, acaba matando qualquer tipo de auto-reflexão.
7.
Na semana passada, fui fazer bird watching pela primeira vez. Todos os outros eram já experientes. Pelo menos eu tinha um binóculo. Ficamos quase quatro horas no jardim botânico, caminhando pouco, e às vezes não havia nada para observar, sobretudo porque, segundo eles, março é um dos piores meses para ver pássaros (os de inverno já foram embora, os da primavera ainda não chegaram). Claro que você já entendeu que estou falando sobre isso ainda remoendo a ideia de desacelerar o tempo. Poucas coisas devem ser tão lentas quanto esperar que um pássaro apareça. Mas há algo para além disso que também me interessa: a ideia de que a recompensa – ver o pássaro – exige esforço e paciência e que, quando chega, é quase sempre fugaz, o absoluto contrário da lógica capitalista de excesso e do ciclo massacrante de estímulos pipocando no celular. Uma coisinha amarela cantando sobre o cipreste e que, de repente, já não está mais lá.
* Se você gosta dessa newsletter, dê like, comente, divulgue e considere apoiá-la por R$10 mensais. Assinantes pagos têm acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura que acontece via Zoom, sempre às 19h. Em 10/4, falaremos sobre Vagabundos iluminados, de Jack Kerouac. Alice Munro (mestra suprema) é nossa autora do dia 4/5 com A fugitiva. Em 5/6, será a vez de Kentukis, de Samanta Schweblin. Acompanhe a newsletter ou meu instagram para saber dos próximos livros.
* Rodrigo Casarin, na sua última newsletter, pergunta se “Todo mundo anda lendo os mesmos livros”. Também é uma questão que me incomoda e, no clube, tenho tentando contemplar lançamentos do mercado, mas também nomes que já não estão mais em evidência, ou que nunca estiveram. Ao mesmo tempo, quero que todo mundo leia Diorama, perdão. ;)
* Na Nevoeiro, você me vê muito mais caminhando pelo mato e lendo do que propagandeando meus feitos literários. Mas vamos agora para um merchan de pé de página: meu primeiro livro, Pó de parede, completa 15 anos em junho, e a Dublinense está preparando uma edição comemorativa lindona com apresentação minha, orelha de Giovana Madalosso e posfácio de Diego Grando (um posfácio também conhecido como “a melhor análise jamais feita sobre meus livros”) / A revista Morel traz nesse mês um conto inédito meu acompanhado de um ensaio fotográfico de Boris Kossoy / Diorama teve os direitos vendido pra França! Será publicado pela Belfond, a mesma editora que já publicou Todos nós adorávamos caubóis.
Carol, pra mim essa foi a melhor newsletter até agora. Quanta reflexão boa, quanta referência boa. Obrigado
Te ler é também observar pássaros