1.
Existem vários jeitos de começar essa história. Descobri que eu tinha um corpo quando comecei a namorar uma corredora. Descobri que eu tinha um corpo quando o da minha mãe começou a falhar. Descobri que eu tinha um corpo quando colocá-lo em movimento passou a ser uma maneira de estar na natureza. Ou a versão com a qual imagino que muitas de vocês se identificam: descobri que eu tinha um corpo exatamente quando fiz quarenta anos.
2.
Pego a bicicleta e vou até o rio. A trilha que acompanha o leito, uns dez metros acima da água, é uma velha estrada madeireira. Começo sob o sol e passo por uma pedreira desativada, então aos poucos a vegetação se adensa, deixando passar só um raios de luz enviesada. É uma floresta em processo de restauração há uns cem anos, e não estaremos aqui para ver se ela voltará a ser como era antes de ser cortada. Ainda assim, é uma coisa maravilhosa.
Cinco quilômetros para leste, chega-se em um ponto em que a trilha e o rio estão no mesmo nível, separadas por um prado. Vou descer da bicicleta e caminhar até a água, mas, por alguns segundos, minha cabeça se perde tentando decidir entre a menor das tragédias possíveis: se eu deixar a bicicleta sem o cadeado, posso ser roubada; se eu colocar o cadeado e precisar da bicicleta para fugir rápido de um criminoso sexual, o cadeado vai atrapalhar. Os dois cenários parecem extremamente improváveis. Não há ninguém ali. Mendocino é segura. Corro nessa trilha duas vezes por semana, e raramente encontro outro ser humano, que dirá a cinco quilômetros da foz do rio. Deixo a bicicleta solta, mas cogito encomendar um spray de pimenta na Amazon. Serviria também para ursos.
3.
A partir dos quarenta, você entende que vai precisar construir os músculos que vão levantar as compras do supermercado aos setenta. Então é bom achar um jeito de gostar disso.
4.
Meu problema com academias sempre foi, além do tédio, a timidez. E a verdade é que não experimentei muitas vezes na vida porque sei muito bem como me sentiria: com a sensação de estar parecendo ridícula fazendo exercício físico. Tudo que envolve algum nível de expressão corporal sempre me pareceu um território inóspito, de blusas decotadas a danças. Quando eu era pré-adolescente, adorava reuniões dançantes – era assim que a gente chamava no Rio Grande do Sul –, mas só dançava as lentas (as mãos esticadas até o ombro do menino), nunca as rápidas (as danças individuais em formação rodinha). As lentas tinham um roteirinho pronto, segurar os ombros e dar uns passos curtos pra um lado e pro outro, eu podia fazer isso, e gostava das canções em si, Guns n’ Roses, Roxette, Bon Jovi me faziam viajar. As rápidas dependiam de mais irreverência, criatividade corporal, individualidade, e eu não conseguia lidar com aquilo, especialmente com aquele momento em que alguém era escolhido de forma aleatória para ir para o meio da roda executar seus melhores passos. A ideia de ser o centro das atenções era insuportável. Sou uma leonina que nunca gostou de ser o centro das atenções. Ou ao menos não o centro literal.
5.
Não há academias na minha cidade. Há uma na cidade vizinha, a exatos 15,7 quilômetros daqui, uma academia máquina do tempo que lembra a de Love lies bleeding, mas sem a Kristen Stewart (filme ruim, aliás). Não frequento essa academia. Nos últimos tempos, consegui desenvolver uma rotina de exercícios bem variada, seis dias com alguma coisa e um de descanso: pilates online, funcional online, corrida, tênis, caminhada em trilha e os eventuais caiaque e bicicleta. Ainda assim, minha balança de bioimpedância diz que meu percentual de gordura aumentou desde dezembro, e nesse exato momento estou mordiscando uma tâmara com culpa. Uma tâmara! Com culpa! Talvez eu deva pegar mais leve com os números e focar em como eu me sinto – ótima –, mas sou um ser desse tempo, e esse tempo está nos esmagando com tantas demandas irrealizáveis.
6.
No dia em que deixei a bicicleta destrancada e atravessei o prado, havia uma árvore caída no meio da trilha, de maneira que, para chegar na margem do rio, era preciso inventar um caminho que não existia. Inventei esse caminho por baixo de uma ponte improvisada – um pedaço de madeira –, e instantamente me vi presa na lama da margem. A cinco quilômetros do mar, esse rio ainda sofre alterações significativas no volume do leito de acordo com a maré, o que significa que toda a terra que, de longe, parece firme, é na verdade uma espécie de areia movediça pronta para te puxar.
Mais cenários mentais: não tenho sinal no celular, ninguém sabe que estou aqui, vou morrer presa na lama, afundando centímetro a centímetro.
Finalmente consigo me descolar da lama movediça. O pé se liberta com um barulhinho de sucção.
7.
As pessoas longevas das Zonas Azuis não passaram a vida inteira indo à academia. Os velhinhos de Okinawa sentam no chão ou em banquinhos de madeira. Nós queremos sofás fofos, e esse é o erro. O excesso de conforto é o erro. A vida moderna é uma contradição: oito horas por dia sentada, e então pegar trânsito para ir à academia caminhar na esteira.
8.
Eu adoro montar móveis. Nada como ficar apertando porcas e parafusos, praticamente uma meditação transcendental. Eu adoro cozinhar. Parar para fazer o almoço é minha pausa mental depois de horas de escrita. Cortar vegetais, sentir aromas, misturar. Sempre fui uma negação para atividades manuais, mas recentemente percebi que mover as mãos, as pernas, o dorso, o corpo todo, é uma maneira de se conectar com o mundo. Uma maneira complementar à maneira intelectual que eu praticava há décadas. Escutar música é incrível, mas talvez dançar também seja.
Tenho mais vontade de mexer meu corpo se sinto que ele é parte de algo maior.
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Colaboradores da Nevoeiro também recebem as edições exclusivas do Caderno Amarelo, em que vou contando sobre o processo de escrita do meu novo romance.
Confira aqui nosso calendário:
8/7 – Cabeça, cortiça, caderno: a jornada de escrita de um romance, com Giovana Madalosso
12/8 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
11/9 – Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Elvira Vigna
9/10 – Uma casa no fim do mundo, Michael Cunningham
13/11 – Onde cantam os pássaros, Evie Wyld
10/12 – Os ratos, Dyonélio Machado
Ei, Carol, o encontro com a Madalosso é dia 8 e nao 18, certo?
Que belas paisagens! Sou do time 40+ que entendeu a necessidade e a gostosura de se
mexer. Sinto até orgulho de mim por ter encontrado este prazer.