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1.
Decido entrar em uma aula de tênis coletiva, aparentemente muito convicta de que esse é um esporte que se pode jogar até os oitenta e tantos anos. Na segunda ou terceira semana, já sou acometida por uma epicondilite, o temido cotovelo de tenista, e as mulheres da minha aula trocam dicas sobre anti-inflamatórios – anota aí, Voltarem pomada – como se trocassem receitas de bolo. A professora diz que estou chegando um pouquinho atrasada na bola, e isso explicaria o trabalho excessivo do meu extensor radial curto do carpo, no que então eu resolvo acreditar por puro desespero: vou melhorar na técnica, isso vai passar. Quero continuar jogando. As aulas acontecem em um hotel sediado em um casarão de 1853, de frente para o Pacífico. É a época dos primeiros lenhadores, a época dos primeiros túmulos do cemitério – os carneirinhos em alto relevo marcam as crianças mortas –, um casarão todinho construído de sequoia-vermelha que funciona como hotel desde 1939. As notícias da Segunda Guerra ainda ecoam no saguão. Ao fundo, duas quadras de tênis.
Dirigir até ali, fazer aula de tênis num hotel antigo em uma cidadezinha de 223 habitantes, é uma situação que nunca se normaliza. Sempre gostei de jogar tênis. Além disso, preciso socializar, conhecer pessoas. É difícil fazer amigos depois de uma certa idade. Tenho a sensação de que o tempo para isso vai ficando escasso, e as habilidades, tão retesadas quanto um extensor radial curto do carpo.
2.
Sentar no chão do quarto em mil novecentos e noventa e poucos enrolando no dedo o fio do telefone e rindo com a amiga da última fofoca do colégio. Dizendo, lá pelas tantas, depois de muitas dezenas de minutos: tenho que desligar, minha mãe quer ligar pra minha vó. Você nunca vai passar tanto tempo com alguém quanto passou com os amigos do colégio e da faculdade – exceto com um namorado, namorada, marido, esposa. Uma pesquisa da Universidade do Kansas concluiu que são necessárias 50 horas de socialização para transformar um conhecido em um amigo casual, 40 horas adicionais para que aquilo vire uma amizade “de verdade”, e um total de 200 horas para que duas pessoas se tornem amigas próximas.
3.
Acho que a imagem do hotel e do cemitério já ajudaram a dar a dimensão –muito pequena – do lugar onde moro, mas, pensando em quem chegou nessa newsletter recentemente, talvez seja bom eu traçar algumas imagens adicionais. O lugar onde moro não é um subúrbio americano brincando de bucólico; a soma desse punhado de cidadezinhas costeiras não passa de 15 mil habitantes. Estou a quatro horas do aeroporto mais próximo. Para sair daqui, é preciso pegar um pedaço de estradinha colado à falésia (a mítica Highway 1), atravessar os lampejos de luz de uma área preservada de sequoias-vermelhas, passar por um vale com nem um milésimo da popularidade de Napa, e então finalmente chegar a uma auto-estrada de três pistas que o levará à riqueza da Califórnia (San Francisco, Vale do Silício).
A costa de Mendocino é uma espécie de zona de intersecção entre o progressismo intelectual-new age e o modo de vida brutalmente rural. É onde uma vizinha chamada Happy benze alguém com vapores de patchouli durante o eclipse solar enquanto um cara desce de uma picape armado com uma motosserra para seccionar uma árvore caída, levar a madeira para casa e fazer fogo.
É aqui que preciso fazer amigos. E em uma língua que não é a minha.
4.
Você já deve ter ouvido falar das Zonas Azuis. São lugares onde há uma grande concentração de pessoas que vivem para além dos cem anos. Cientistas e demógrafos tentam entender as características desses lugares de longevidade acima da média, procurando pistas nos estilos de vida. Alimentação, atividade física, socialização, crenças, etc. Há uma série documental na Netflix sobre as Zonas Azuis. Na Sardenha, os povoados que apresentam maior longevidade são os povoados montanhosos, onde as pessoas precisam subir ladeiras constantemente para ir até o mercado, o amigo, a igreja. Isso é só um dos bons hábitos apontados, e sem dúvida o mais engraçado. Outro seria parar de comer quando se está 80% satisfeito. Difícil.
Três das nove lições das Zonas Azuis tem a ver com relações humanas. Uma delas prega que você deve se cercar das pessoas “certas”, pois comportamentos saudáveis são contagiosos – assim como os não saudáveis, obviamente.
Consigo ver uma conexão entre isso e um estudo cujo título é “Interações sociais e bem-estar: o poder surpreendente dos laços fracos”, que basicamente está dizendo que você não precisa só de amigos 200+ horas, mas que até aquela faladinha na fila do supermercado conta. Consigo ver uma conexão entre isso e o tênis. Entre isso e as mulheres que se juntam aqui para nadar no rio gelado, e que não necessariamente trocam confidências, mas batem os pés juntas e riem das focas e comem depois um pedaço de um bolo que uma delas assou. Entre pessoas que se juntam para pintar, mesmo que pintem mal. Entre pessoas que saem para andar de bicicleta em grupo. Que tocam jazz. Que dançam. Que se reúnem para discutir um livro.
5.
Algumas semanas atrás, minha turma do tênis – as jovens mamães, sou a única sem filhos – se reuniu para jogar com outro grupo, o das 70+ – agora estou falando de idade, não de horas de interação –, mulheres que aparentemente não sofrem de epicondilite, e que inclusive puderam me dar conselhos sobre isso. Uma das minhas colegas levou uma foccacia para comermos depois dos jogos. Comentei do meu recente fracasso com pão de fermentação natural; matei a levedura, apesar de ter feito tudo certinho, fiquei arrasada com isso etc. Na aula seguinte, a colega me levou aquela massa fresca e pegajosa numa jarrinha de vidro. Me passou uma receita nova, me disse como alimentar o bicho. Desde então, sucesso.
6.
Quando nos mudamos para um novo lugar, os dias mais esquisitos são o sábado e o domingo. Leva um tempo para descobrirmos como o lugar funciona, o que as pessoas fazem, leva um tempo para construirmos nossos novos hábitos. E então, de repente, acontece. O fim de semana fica curto para tanta coisa.
7.
Embora eu tenha saudade das horas falando bobagem, das horas de tédio, dos brigadeiros de panela às duas da tarde, dos testes da Capricho, do disco do Green Day rodando no som, preciso confessar que não me sobrou nem uma mísera amiga daquela época. Banco de milhares de horas que evaporaram.
8.
Entre os amigos que eu e a Melissa fizemos aqui, há uma família de Porto Alegre. Um casal, duas filhas. Quando encontramos esses amigos, sobretudo quando vamos jantar no casal ou em uma das filhas, minha familiaridade com esse lugar – Mendocino há muito já é nossa casa, em termos reais e afetivos – se mistura com algum nível de estranhamento difícil de pôr em palavras. Vou dirigindo pelas estradas rurais, o céu a ponto de escurecer, o vulto das árvores gigantes, um telhado ou outro, esqueletos de carros imóveis, e de repente lá está o estranhamento, potencializado pelo fato de que estamos indo ao encontro dos porto-alegrenses; parece que o esperado é que estívessemos indo jantar no novo italiano do Moinhos de Vento, e no entanto estamos aqui, entranhadas no meio de uma floresta de coníferas, jogando tênis em velhos hotéis, aprendendo a fazer pão. Sorrio para mim mesma. Estacionamos debaixo das árvores e nos guiamos pela luz acesa da casa.
As nove lições das Zonas Azuis estão resumidas aqui.
Na edição #10, falei sobre o grupo de nadadoras.
“Social Interactions and Well-Being: The Surprising Power of Weak Ties” é o artigo que mencionei, se alguém tiver paciência de ler.
Esse o calendário do Clube Nevoeiro. Sempre envio o link do Zoom na véspera do encontro. Já escolhi os livros até o fim do ano, mas vou manter o mistério por mais algum tempo.
9/5 – Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8 – Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
Quando li "banco de milhares de horas que evaporaram", senti uma pontada. Porque é isso, é exatamente assim.
Adoro a atmosfera do lugar que vc mora, as vezes me sinto em um filme americano quando estou lendo.
Tb perdi o contato de vários amigos do colégio. É muito triste isso, só nos demos conta disso as vezes tarde demais.
Parabéns pela newsletter, adoro sua maneira de contar histórias.