1.
A primeira anotação sobre o romance que eu chamaria anos depois de Diorama está num caderno mole de capa azul. Curiosamente, são os únicos rabiscos precedidos de uma data, 30 de maio de 2018, como se eu estivesse mais ou menos consciente de que, agora sim, ia começar um novo projeto (“A história é meio baseada no Caso Daudt”, diz a primeira frase). Não sei de onde veio essa convicção. Do início até a metade do caderno, dá para ver a ansiedade arrancando da mente ideias que deram em nada: anotações sobre Gramado feitas a partir de duas entrevistas porque eu tinha uma vaga premissa para uma série de tevê; anotações sobre um suposto conto baseado no Pampas Safári, um parque da minha infância que ficou decadente e agora era o habitat de uma superpopulação de cervos que os administradores queriam abater. Lembro de ter ficado muitos meses pensando nessa história do Pampas Safári, e talvez seja injusto dizer que as tentativas levaram a um beco sem saída: aquilo acabou dando vida aos cervos misteriosos e assustados que, anos depois, eu iria empalhar.
2.
Fui atrás desse caderno um mês atrás porque sentia que precisava rever os vestígios. Precisava do conforto dos vestígios. Escritor tem uma certa amnésia de processo criativo, esquece muito fácil do quanto o começo é devagar, hesitante e cheio de caminhos não tomados, de maneira que, quando está ansioso para iniciar um novo projeto mas não consegue engrenar, acha que aquele perrengue todo é novidade. Secaram as ideias, não sei mais escrever, etc. Essa ingenuidade momentânea é em parte alimentada por uma crença romântica de que tudo se origina em um estalo. E Deus criou o mundo, o nada virou tudo de repente. Pela minha experiência, um romance não nasce de um único estalo, mas de uma série irregular e imprevisível de faíscas que podem ficar espocando por anos. Nem todas fazem o fogo pegar. Uma vez a coisa pronta, encadernada, na rua, aí sim a escritora cria uma narrativa coerente sobre a origem do romance porque vai precisar responder muitas vezes a pergunta “de onde surgiu a ideia para esse livro?”. “Não sei muito bem”, embora sincera, é uma resposta que faria você parecer uma idiota.