Essa é uma edição especial, que fala sobre criação literária a partir do processo de escrita do meu próximo romance. Se você não é assinante pago, vai encontrar o antipático Paywall em algum momento aí embaixo. Perdão, mas os artistas precisam manter a sua lojinha! Colaboradores também têm acesso a encontros mensais via Zoom. Nesse ano, os encontros serão alternados entre clube de leitura e bate-papos com convidados. A programação está aqui.
Foi no início de dezembro que consegui pensar no meu novo romance pela última vez. Como eu tinha anunciado aqui na edição anterior, fiz aquela coisa caprichosa de alugar uma cabana mais isolada do que a minha para ficar tomando chá preto e criando frases numa luz sempre crepuscular de inverno. Algumas coisas saíram como o planejado. Deitei no chão e pensei nos adjetivos que definiriam um personagem altamente secundário em seu primeiro encontro com a protagonista do livro (“desespero canino” foi uma das coisas que saiu). Passei uma manhã escrevendo um parágrafo, e de tarde veio outro, e mais um. Pesquisei crimes recentes acontecidos no bairro Floresta, em Porto Alegre, e incorporei isso às páginas. Às vezes eu pegava o carro e ia até a cidade mais próxima porque achava difícil escrever mais do que três ou quatro horas sem um intervalo. É um lugar maior – dezenove mil habitantes – do que o vilarejo onde eu moro, uma cidade universitária com restaurantes legais, cafés, um sebo de dois andares, uma loja de discos das mais lindas que eu já vi.
Num desses intervalos mentalmente necessários, pedi um sanduíche de bagel em um café e sentei em uma mesinha de rua. E aí tudo começou a tremer. Era um dia de sol. Olhei para o cara que estava na mesa ao lado e perguntei se ele era dali e ele disse que sim e perguntei o que a gente deveria fazer e ele respondeu, como um bom bicho-grilo do condado de Humboldt, “só relaxa que vai passar”. O tremor continuou durante os muitos segundos desse diálogo, mexendo fantasmagoricamente meu sanduíche e minha xícara de cappuccino. Já li que a atitude correta em um terremoto é se proteger embaixo de uma mesa, mas tenho a impressão de que simplesmente nos falta qualquer instinto diante de um tremor de placas tectônicas se tensionando nas profundezas do oceano; parece muito irreal que três placas chamadas Pacífico, América do Norte e Gorda (nome alternativo: Juan de Fuca. Juro) sacudam as fundações de milhares de casas e causem estragos em fios de luz, canos de gás e fazendas de maconha. Fiquei parada.