No meio do caminho tinha uma sequoia. Tinha uma sequoia no meio do caminho.
Essa é uma edição mensal só para colaboradores, que fala do processo de criação do meu próximo romance, mas em março fui massacrada pela reta final de uma tradução – The Overstory, Richard Powers –, esse projeto narrativo descomunal, espécie de Arca de Noé vegetal compulsiva de 500 páginas cujos personagens se entrelaçam e se ramificam até o enlouquecimento dessa pobre tradutora. Será publicado pela Todavia e estou ansiosa para que vocês leiam. Baita livro lindo.
Por conta disso, mas para não furar o compromisso que assumi, envio a vocês não meu diário de processo criativo, mas um conto que escrevi no meu primeiro ano morando no mato californiano. Esse conto foi publicado nos Estados Unidos na antologia Cuier, mas de queer só tem a autora, he. Uma história 40% ficção, 60% vida real.
(e a edição gratuita certamente não saíra essa semana, perdão)
Uma nova casa
1.
Tenho certeza que ela é uma boa pessoa, pois está em Uganda adotando duas crianças. O processo pode levar até dois anos, e cada criança custa 14.500 dólares. É preciso viver no país pelo tempo que a burocracia durar (estimativa de despesas adicionais, segundo o site do Programa de Adoção de Uganda: 22.000 dólares).
Angelica está na África há dezesseis meses. Entro no Facebook para bisbilhotar. Não peço amizade. Ela é loira com dreads, as sobrancelhas estreitas e curtas, uma cara de boneca de cera. Tirou uma foto de uma barata e perguntou se alguém estava tendo aquele mesmo problema em Jinja, mas eu não me impressionei, mesmo com a caneta bic ao lado do inseto morto a título de proporção; sou do Brasil, conheço baratas.
“Quero tanto ir para casa”, Angelica escreveu doze dias atrás. “Estou cansada das coceiras, das infecções, da malária, dos parasitas. Aqui é um lugar onde a yoga é considerada adoração do demônio, e pão branco e Cheetos são comidas saudáveis. Sei que tudo isso está determinado na minha linha da vida, mas, às vezes, é simplesmente difícil demais.”
2.
Ainda não tive tempo de abrir minhas caixas e colocar as coisas em ordem. Angelica disse que a casa estaria limpa, mas encontro pelos de gato por tudo e uma bola azul com um guizo embaixo do sofá. A antiga locatária também deixou para trás um pacote de Oreo. Coloco os biscoitos e o brinquedo de gato no lixo, depois sento para trabalhar.
Uma única chamada durante toda a manhã: em algum lugar do Massachussetts, um brasileiro motorista de Uber bateu o carro. Ele me passa seus dados em português e eu os repito em inglês para o homem da seguradora. Parece que está chorando. Então começa a falar diretamente comigo: “Moça, não posso ficar sem trabalho. Tenho dois filhos e minha mulher limpa quarto de hotel.” “O que ele disse?”, pergunta o homem da seguradora. “O senhor Moreira quer saber quanto tempo vai levar o conserto do carro.”
3.
Nunca sei como terminam as histórias. Faz parte do trabalho. Não sei as sentenças que vêm depois dos depoimentos, se o emprego ainda está lá quando os carros voltam da oficina, se recebem alta ou se morrem os pacientes que estão nos hospitais.