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1.
Sofri um acidente de carro em 2001. Era uma motorista novata, estava chovendo muito, dobrei onde não podia e um ônibus acertou a lateral do meu carro. Não sei se tive clareza ou a coragem de entender o quão perto cheguei de desaparecer naquela noite de 25 de março, na frente das Casas Tigre, sobre uma ponte do Arroio Dilúvio, mas lembro de alguém dizer depois que eu tinha sido salva por umas tais barras de proteção lateral do carro – era um Peugeot 206. Nunca me esqueci disso, que escolhi aquela específica marca e modelo só porque achava bonito e porque meu avô podia me dar um presente caro, jamais soube das tais barras. Vi o Peugeotzinho no conserto depois, era praticamente só um chassi flutuando na oficina, um fóssil metálico, a seguradora não tinha declarado perda total por centavos.
O motorista do ônibus foi afastado da companhia e, sabe-se lá como, arranjou o telefone da minha casa. Queria que eu me declarasse culpada pelo acidente, falou com meus pais, eu estava bem, só tinha uns pontos na cabeça e aquele cabelo novo crescendo. O motorista tinha deixado o corredor de ônibus para ultrapassar outro ônibus – esse tinha me visto –, e foi assim que acertou o carro. Naquela noite, a placa sinalizando que era proibido dobrar à esquerda virou 90 graus com a tempestade, não se podia ver nada. Meu pai tirou fotos disso. As fotografias ainda estão numa gaveta na casa da minha mãe, uma dúzia de imagens de uma ponte banal junto a recordações de aniversários, viagens e festas.
2.
Demoraram tanto a reconstruir o carro que acabaram me emprestando um Fiat Tempra com um deque de fita-cassete. O que diziam sobre os Tempras na época é que era o preferido dos bandidos porque a porta abria num ângulo maior. Eu tirei do fundo de um armário uma fitinha do Roxette – Look Sharp!, 1988 – e saía por Porto Alegre ouvindo aquilo, Cidade Baixa, Zona Sul, McDonald’s da Perimetral. Estou contando isso porque tive que pensar recentemente nessa fase da vida por causa de um texto. Eu saía com uma menina por quem eu tinha uma queda gigante, mas a coisa nunca passava de umas noites rasteiras parando em lojas de conveniência, dando uns amassos dentro do carro. Acho que ela nunca foi apaixonada por mim. Quer dizer, tenho certeza. Naquele tempo, ela estava sempre de moletom porque cortava os braços, não sei ao certo se eu sabia sobre isso ou descobri muito depois, mas esse era também o meu tempo de atração extrema por meninas transtornadas. E como demorou a passar (anos de psicanálise).
Acho que sobrou muito pouco dessa menina que eu endeusava. Ela tinha um jeito de mexer no cabelo que iluminava instantaneamente todo o estacionamento do McDonald’s.
3.
“É talvez porque você não pode voltar no tempo”, escreveu a ensaísta Rebecca Solnit “mas pode voltar aos cenários de um amor, de um crime, da felicidade, de uma decisão fatal; os lugares são o que sobra, são o que você pode possuir, são a parte imortal. Eles se tornam a paisagem palpável da memória, esses lugares que fizeram você. De certa forma, você também se torna esses lugares.”
Solnit estava tentando responder por que há tantas paisagens nas letras das velhas canções country.
4.
Concordo e não concordo com Solnit. Há vários graus de imutabilidade. Várias escalas de tempo. O McDonald’s da Perimetral, de onde se tinha uma perfeita visão das quadras de tênis de um clube que não lembro o nome, não existe mais. Será que o clube ainda existe? No tal texto que eu estava escrevendo essa semana – meu primeiro livro está fazendo 15 anos, haverá uma edição comemorativa –, evoquei justamente um monte de lugares que foram varridos da cidade. Lugares que coloquei nos meus livros e que de repente, pah, não estavam mais na cidade real. Brinquei por muito tempo que eu tinha um toque de Midas invertido, que eu lançava uma maldição sobre as casas e prédios que mencionava nas minhas histórias, mas depois entendi que eu escolhia de propósito esses lugares; eram símbolos de algum tipo de resistência, imóveis que não se enquadravam na lógica urbana em curso, no apagamento inclemente, na especulação imobiliária rastaquera. Acabaram sucumbindo, já estavam condenados, a questão era só saber quando desapareceriam.
5.
Há um farol perto de onde eu moro chamado Point Cabrillo, é bonito sobre as falésias, a luz dá uma volta completa a cada dez segundos, não sei o quanto ele ainda faz sentido em termos de navegação, mas está lá, funcionando. Durante as tempestades de janeiro, uma onda atingiu o farol – um museu e uma loja de souvenirs funcionam no primeiro andar –, algo que só tinha acontecido duas vezes na existência do prédio, em 1928 e 1960. Dia desses, no Instagram, a conta do Point Cabrillo postou uma foto comparativa das falésias que ficam imediatamente à frente do farol, fotos com algumas décadas de intervalo que mostravam uma erosão violenta.
Essa é outra escala de tempo, mas a mudança chega, ou melhor: não há absolutamente nada que não esteja mudando o tempo todo.
6.
Mas eu já tive ilusões. Já inclusive comentei sobre isso na newsletter, sobre como, ao chegar em Mendocino e me deparar com uma natureza tão exuberante, tive a sensação de que esses elementos todos, árvores, oceano, rochas, exalavam um forte sentido de permanência, e tentei me agarrar a isso porque, bem, essa é sempre uma ideia que traz algum tipo de conforto. Todo mundo, em algum grau, resiste à mudança. Só que depois, não muito depois, entendi as processos de transformação, não só porque li um livro budista e lutei com os ensaios de Emerson e Thoreau; fui aprendendo melhor a olhar. Li em algum lugar que você só cuida de algo, só se importa com algo, se conhece esse algo pelo nome. Conhecer o planeta para se importar com o planeta. Eu cheguei aqui e para mim tudo era um amontoado confuso de verde, mas depois consegui separar as partes. Ainda não tanto, mas já melhor (nota mental: aprender o nome de todas as espécie de plantas que vejo pela janela).
Ver o detalhe é ver a mudança.
As cavalinhas começaram a nascer, e hoje eu sei que esse é o início da primavera.
7.
Nesse livro da Rebecca Solnit que acabei de reler, A field guide to getting lost (ainda inédito no Brasil, alô, editoras), ela problematiza a questão de distância de uma forma muito bonita. Há quatro capítulos chamados “The blue of distance”. No primeiro, Solnit discorre, entre outras coisas, sobre como os elementos mais distantes de uma paisagem nos parecem envelopados em azul, e como a pintura incorpora isso a partir do Renascimento. Algumas páginas depois, dando uma completa volta livre-associativa, a autora vai falar sobre a diferença de perspectiva de um adulto e de uma criança:
Para as crianças, é a distância que gera pouco interesse. Gary Paul Nabhan escreve sobre um passeio com seus filhos no Grand Canyon, durante o qual ele percebeu “quanto tempo os adultos gastam examinando a paisagem em busca de cenários atraentes e vistas panorâmicas. Enquanto as crianças estavam de quatro, ocupadas com o que havia imediatamente diante delas, nós, adultos, viajávamos por abstração." Ele acrescenta que, sempre que se aproximavam de um promontório, seu filho e sua filha "abruptamente soltavam suas mãos das minhas para vasculhar o solo em busca de ossos, pinhas, arenito brilhante, penas ou flores silvestres". Não há distância na infância: para um bebê, a mãe no quarto ao lado se foi para sempre. Para uma criança, o tempo até o aniversário é infinito. Tudo o que está ausente é impossível, irrecuperável, inalcançável. Sua paisagem mental é como a das pinturas medievais: um primeiro plano cheio de coisas vívidas, e depois uma parede. O azul da distância vem com o tempo, com a descoberta da melancolia, da perda, da textura da saudade, da complexidade do terreno que percorremos.
8.
Talvez o segredo seja aprender a enxergar tanto de longe quanto de perto. Nunca deixar de ser um pouco criança.
O Clube Nevoeiro é um clube de leitura com uma curadoria afetiva. Os encontros acontecem via Zoom, às 19h. O primeiro encontro, sobre Escute as feras, foi bom demais. Calorzinho extremo no coração. Em 10/4, falaremos sobre Vagabundos iluminados, de Jack Kerouac. Alice Munro (mestra suprema) é nossa autora do dia 4/5 com A fugitiva. Em 5/6, será a vez de Kentukis, de Samanta Schweblin. Acompanhe a Nevoeiro ou meu instagram para saber dos próximos livros.
"Ela tinha um jeito de mexer no cabelo que iluminava instantaneamente todo o estacionamento do McDonald’s."
Esta frase em especial me pegou forte. =)
Tem sido muito bom ler cada nova edição do Nevoeiro.
Sobre o livro de Solnit citado, acredito que seja o "Um guia para se perder" publicado em 2022 pela Martins Fontes.