Essa newsletter continua gratuita, mas considere fazer um upgrade da sua inscrição por apenas $10 lulinhas mensais para ter acesso ao Clube Nevoeiro, meu novo clube de leitura. Mais detalhes no final dessa edição.
1.
Novembro de 2021 e eu estou num laboratório de ciência. O cheiro químico e o maravilhamento da infância. Pelas mesas compridas estão espalhadas bandejas de isopor com cogumelos de todas as formas e cores. Alguns parecem corais, flores gelatinosas, outros lembram a dentadura de um animal ainda a ser descoberto. Lá na frente, a professora desenha no quadro um mapa tosco e identifica um lugar como o “quadrilátero dos cogumelos”. Vamos para lá em seguida, cada um no seu carro. Fica depois que o asfalto termina e é escuro e úmido, tudo o que um cogumelo adora. Entramos em uma trilha e começamos a olhar com muita atenção pro chão desse lugar que é um pedaço pequeno da imensa Jackson Demonstration State Forest. Muitas coisas do meu cotidiano ainda me causam uma sensação agradável de ruptura, um espanto poderoso, e essa é uma delas: quinta-feira de manhã e aqui estou no meio de uma floresta do Noroeste Pacífico, tentando identificar cogumelos.
2.
A Jackson Forest não é um paraíso livre de tensões. Durante todo o ano de 2022, ocorreram protestos contra o atual manejo da floresta, que prevê um equilíbrio delicado entre extrativismo dito sustentável, área de recreação e habitat de animais selvagens: os moradores claramente não gostam da parte do extrativismo e protestaram com música e discursos políticos assim que souberam da derrubada recente de árvores, numa mistura de motivação ambientalista e pensamento Not in My Backyard, algo que acho tão complexo de entender quanto o manejo “correto” de uma floresta. Já tentei ter uma opinião sobre o modo de intervir nessas áreas, mas as divergências parecem tão grandes mesmo entre especialistas que achei melhor deixar pra lá (algo que recomendo muito praticar: aceite suas limitações e a complexidade das coisas; não tenha opinião sobre tudo).
Na última aula de identificação de cogumelos, encontrei uma meia dúzia de matsutakes, ainda enterrados sob uma grossa camada de serrapilheira. Levei-os para casa.
3.
Foi só mais de um ano depois que li, por recomendação do meu amigo André Araújo, o livro O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. Nele, Anna Tsing faz um belo trabalho multidisciplinar maluco centrado nesse cogumelo chamado matsutake, considerado uma iguaria no Japão, e que emergem justamente nas florestas perturbadas pela ação humana.
Me arrependi de não ter prestado mais atenção nos matsutake quando os encontrei: não tinha nenhuma lembrança do cheiro – algo inesquecível e indescritível, segundo Tsing – e, ainda por cima, tinha os preparado de maneira incorreta – não se deve colocar óleo ou manteiga porque mascaram o gosto. Acho que acabei transformando meu matsutake em um shitake de supermercado.
No livro, Tsing fala muito do Oregon, a origem de grande parte do matsutake que posteriormente é vendido no outro extremo do mundo. Estou a umas cinco horas do Oregon (não sei quantos quilômetros, desculpa. Aqui as distâncias são medidas em tempo; o tempo do automóvel particular). Quem colhe os cogumelos nas florestas do estado, dizimadas e irreconhecíveis por décadas de extrativismo, são sobretudo pessoas que emigraram do sudeste asiático, e a dinâmica dessa atividade não lembra em nada a dos trabalhadores agrícolas; as pessoas guardam uma certa independência e uma lógica contracultural que me fez pensar muito nos cultivadores de maconha da minha região (um negócio que atualmente colapsou, mas isso é assunto para outro dia).
As engrenagens do capitalismo ainda giram, mas de um jeitinho diferente.
Com o livro de Tsing, aprendi que os lenhadores só pararam de derrubar as florestas do Oregon em meados dos anos 1970. Súbita consciência ambiental? Nada disso. Os preços caíram a níveis absurdos quando o sudeste asiático foi consumindo todas as suas florestas e exportando madeira adoidado. Já não era economicamente viável derrubar árvores nos Estados Unidos naquela escala.
Em resumo, o cobertor é curto nesse planeta chamado Terra, e a lógica do Not in My Backyard é a receita para a destruição de algum lugar que não estamos vendo.
4.
Sempre dá uma tristeza passar na estrada por um caminhão levando toras, disse a pessoa sentada em uma cadeira de carvalho.
5.
Meu avô materno trabalhava com exportação de madeira. Eu já o conheci como um senhor aposentado, mas lembro dos blocos de risque-e-rabisque com o logotipo que representava uma araucária, do tempo em que era legal derrubar araucárias. Quando alguém visitava o apartamento dele, ele fazia um tour e mostrava com orgulho as portas e o piso de jacarandá maciço. Jacarandá é a árvore das florzinhas roxas. Me lembram Porto Alegre, as calçadas de pedra portuguesa salpicadas delas.
6.
Foi na época do curso de cogumelos que dirigi até o Oregon pela primeira vez. Cruzei a fronteira e o Google Maps estampou a mensagem: Welcome to Oregon! A figurinha ao lado representava um lenhador. Quando voltasse pra Califórnia, ia receber a mensagem de boas-vindas com um surfista.
Fui pro vizinho do norte porque estava em uma crise braba com a escrita do Diorama. Tinha passado um pouco da metade do livro e sentia que não podia continuar sem ajeitar algumas coisas mas, ao mesmo tempo, não sabia o que e como ajeitar. Estava no ponto da paralisia total. Conversando com a Melissa, achamos que seria uma boa ideia eu passar uma semana sozinha em algum lugar isolado, o que até hoje me parece quase risível, porque, meu deus, eu já moro num lugar bem isolado, não dá exatamente pra reclamar disso. Mas o fato é que aquele quebra no espaço-tempo funcionou. Cheguei na cabana e mudei todos os móveis de lugar até deixar a mesa de frente pra janela. Chovia o tempo todo e eu ficava trabalhando muito mais horas do que trabalharia normalmente. Quando não estava escrevendo ou estruturando o Diorama, cozinhava e comia na frente do computador assistindo o Salman Rushdie falar sobre seu processo de escrita.
Aquela cabana com cheiro nauseante de produto de limpeza – desse cheiro sim eu me lembro bem– acabou salvando meu livro. Ou pelo menos fez com que eu retomasse minha confiança, o que é parte fundamental do processo.
Depois de muito quebrar a cabeça pensando em como recompensar os assinantes da versão paga dessa newsletter, surgiu o Clube Nevoeiro: os seus $10 lulinhas mensais (ou $100 no plano anual) dão acesso aos encontros de Zoom em que discutiremos o livro do mês, divulgado com a devida antecedência por aqui e pelo Instagram. Esse é um clube de escolhas afetivas, que não pretende dar conta de toda a diversidade da literatura mundial, nem discutir apenas os últimos lançamentos do mercado. Sempre vou começar com uma apresentação do livro, do autor ou autora, contexto, relação com outras obras, etc, e daí partiremos para a conversa propriamente dita.
Os encontros vão acontecer às 19h, horário de Brasília.
Nosso primeiro encontro será no dia 02/03 sobre Escute as feras, essa preciosidade híbrida da Natassja Martin.
Nosso segundo encontro será no dia 10/04 sobre Vabagundos iluminados, do Jack Kerouac.
Vem com a gente!