1.
O fait divers mais potente da história do rock aconteceu em setembro de 1973 quando Gram Parsons teve uma overdose num motel de Joshua Tree, Califórnia, e um bando de amigos sequestrou o caixão e tentou atear fogo nele com cinco galões de gasolina dentro de um parque nacional. Parsons tinha 26 anos. Os amigos estavam tentando realizar um desejo que ele teria expressado. Obviamente deu tudo errado. A morte de um cara assim tão jovem e genial, claro, é uma coisa trágica, mas fica difícil hoje em dia tirar as tintas tarantinescas do episódio: morte como espetáculo, aquele sorrisinho no canto do lábio pelo insólito da coisa.
Sai o luto, fica a narrativa.
Na semana do Natal, fui pela primeira vez a Joshua Tree.
2.
A Califórnia não chega a ser um Chile, mas é relativamente comprida e estreita, e eu moro bem ao norte do estado, num lugar onde a umidade do ar nunca é menor que 80%. Aqui o que rola – sobretudo subindo um pouquinho mais – são camisas de flanela, botas e lendas envolvendo o Pé Grande. Para chegar em Los Angeles e nos desertos do sul, preciso dirigir umas 10-11 horas. Lá embaixo, na região onde Gram Parsons fez essa bobagem de misturar álcool e barbitúricos e heroína comprada de uma total estranha, as aparições do Pé Grande são substituídas por aparições de OVNIs. A regra parece ser: onde há traços geológicos muito fortes, as pessoas querem achar explicações que vão para além da Terra. De Minas do Camaquã, Rio Grande do Sul, a Sedona, Arizona. O parque nacional Joshua Tree tem umas rochas bem esquisitas.
Melissa decidiu passar cinco semanas no Brasil, incluindo o período de fim de ano – no hard feelings –, então fiz esse plano de rumar para o sul como uma forma de quebrar em dois meu retiro espiritual forçado aqui na cabana. O plano envolvia encontrar amigas e amigos. O plano também envolvia ficar sozinha num motel em Palm Springs, cidade que eu queria conhecer por causa das casas modernistas: o berço desse sub-movimento chamado Desert Modernism.
Tudo parece um desperdício, mas é bonito demais.
3.
Desde agosto, tenho vivido espasmos de socialização intensa seguidos de espasmos de isolamento. É uma experiência interessante. Aos quarenta anos, seus amigos estão espalhados pelo mundo (ou ao menos os meus estão). O funcionamento dessas amizades é diametralmente oposto àquelas da adolescência e dos vinte e poucos, quando a convivência intensa parecia ser o cerne dos vínculos afetivos. Agora há pessoas que encontro a cada um, dois anos. Esses encontros costumam ser bem significativos e dão aquela sensação de nunca estivemos distantes, a intimidade continua a mesma, etc. Outros infelizmente são atravessados por uma formalidade esquisita e o sentimento de que mudamos em direções opostas. O que fazer com esses? Não sei.
Os encontros significativos e pontuais com essas pessoas que gosto tanto me dão a sensação de que, por algumas horas, estou habitando um lugar, um lugar novo, conhecendo sua intimidade e seus detalhes, depois sendo ejetada dele e voltando para o meu espaço solitário (nota mental: preciso ler uma certa Doreen Massey, que parece dizer que devemos repensar a ideia de espaço como algo que está fora; nós somos o espaço e o espaço somos nós). Ouço planos sobre comprar uma casa em Los Angeles, conheço um papagaio, me instalo numa sacadinha em São Paulo conversando sobre ficção especulativa, tomo um sorvete em Porto Alegre, passo a noite num motel em Paso Robles com uma amiga que conheci pelo Instagram, falo – imersa em uma hot tub em Palm Springs – sobre envelhecimento e atividade física. Uma constelação de encontros significativos.
Sabe aquela matéria que você vê em todas as revistas sobre como fazer amigos depois dos trinta anos? No meu caso, esse foi um subproduto extremamente positivo da vida literária – outro vem a ser estar autorizada a passar o dia usando calça de moletom.
4.
Dizem que os quarenta são os novos trinta e blá blá blá. Existe algum fundamento nisso, mas para mim a mudança para os quarenta ainda tem uma cara de ponto de virada. É nos quarenta que a gente começa a morrer. Ou: que a gente percebe que vai morrer. Foi também perto dos quarenta que passei a viver mais, com uma intensidade que não é a da juventude – essa me parece muito atrelada a comportamentos sociais esperados –, mas uma intensidade mais certeira, talvez mais espiritual. E que certamente envolve muito mais amor.
5.
Meu primeiro dia em Palm Springs foi um dia solitário. Eu e meu mundo. Vi a luz do amanhecer deixar as montanhas alaranjadas e preparei minha mochila e dirigi até uma reserva indígena. Estou no deserto como a Cecília, a minha personagem. Havia muitos quilômetros de uma planície árida e então montanhas alinhadas ao fundo, meio dissolvidas pela névoa da manhã. Aqui e ali, dava para ver algumas palmeiras de copa robusta, um oásis não como os dos desenhos animados, mas que seguia a linha sinuosa de um córrego. Era a trilha que eu ia fazer.
O córrego era uma coisinha de nada e várias vezes eu tinha que atravessá-lo pulando de uma pedra a outra e já sentia uma comunhão absurda com o entorno. Ainda não consigo escrever isso sem ouvir as risadinhas debochadas do meu lado cidadã do mundo contemporâneo que tem a obrigação de achar esse tipo de coisa ridícula e cafona. Mas estava acontecendo. Foi uma caminhada bonita que continuou por um cânion e terminou em uma queda d’água modesta, condizente com a escassez da paisagem.
Essa caminhada se complementou com outra que fiz no mesmo dia a quase 3 mil metros de altitude, e lá estava tudo nevado e a multidão que tinha subido comigo no teleférico resolveu ficar em volta da estação enquanto eu segui praticamente sozinha essa tal trilha chamada Desert View, achando no início que ia escorregar e quebrar a perna, mas depois aprendendo aos poucos a andar na neve.
6.
Joshua Tree foi no dia seguinte. Não cheguei ao tal sentimento de sublime quando estava no parque, talvez mais por alguma coisa em mim do que pelo lugar em si. Será que as expectativas arruinaram tudo? Achei que ia caminhar muito, mas no fim passei a manhã dirigindo de um ponto a outro. Na saída, fiz questão de parar no motel em que Gram Parsons morreu, em uma cidadezinha insossa espalhada pelos dois lados da rodovia, com uma feira de artesanato que vendia quadros com discos voadores.
A banalidade do prédio do motel pareceu enfraquecer o poder da lenda. Não consegui enquadrar o prédio de maneira que ficasse minimamente interessante – tudo é narrativa! – e acabei tirando apenas uma foto da placa. Talvez eu estivesse procurando Gram Parsons no lugar errado. Voltei para o carro e coloquei She para tocar. Aí sim.
Ai, Carol. A tua linguagem não-ficcional para narrar o cotidiano é tão real, verdadeira, quanto tua prosa ficcional. É muito bela essa tua capacidade de captação de detalhes e significância em supostas banalidades. <3
O mais massa do "Nevoeiro" é poder acompanhar à distância — com um vislumbre do que poderia ser sido estar junto — as aventuras de uma literata cosmopolita ermitã por esse mundão-californiano-de-meu/deus.
Tem também uns insights de amizades pós 40 beeeem fodas.
Aldo, fotos. Curti bastante o lance da arquitetura do deserto e talz. :)