Se você gosta do meu trabalho, considere se tornar um assinante. Colaboradores têm acesso a um encontro mensal no Zoom, que, em 2025, será um misto de clube de leitura e bate-papos com convidados. Já temos quatro convidados confirmados para o primeiro semestre! Falaremos de literatura, mas também de vida, de meditação, tecnologia, exercício, enfim, tudo o que você vê aqui na Nevoeiro. Assinantes pagos também recebem as edições exclusivas do Caderno Amarelo, que acompanha o processo criativo do meu novo romance.
1.
Esse é um texto sobre sexo que começa comigo dobrando roupas macias e mornas, recém saídas da máquina de secar. Talvez isso signifique alguma coisa, em um nível simbólico; talvez não. Faz seis anos que não temos máquina de lavar em casa, e durante quase todo esse tempo frequentei uma lavanderia automática na cidade vizinha – não há lavanderias na minha cidade –, me sentindo num conto da Lucia Berlin porque é exatamente aquilo, uma desesperança americana misturada ao cheiro de sabão barato, hits de outra era e o barulho das moedas de vinte e cinco centavos despencando na máquina de troco.
Recentemente, comecei a lavar a roupa no quartinho da casa da nossa senhoria. Ela tem demência e está assistindo tevê. Enquanto lido com o cesto, a cuidadora me conta que seu cunhado vai levar toda a família em um cruzeiro no Alasca. Ia ser América do Sul, mas acabou sendo Alasca. Eu digo puxa o Alasca deve ser lindo, termino de guardar as roupas e cruzo o pátio escuro com uma lanterna de cabeça no meio de uma chuva muito fina. Estou dobrando as roupas em casa quando minha amiga A. me avisa por mensagem: vou passar aí. Ela vem. Sigo organizando camisetas, calças e tops no meio da sala enquanto ouvimos Hermanos Gutiérrez. De repente puxo uma tira preta de nylon do cesto e com um sorriso intrigado digo O que é isso daqui?
Ela responde: “você logo vai descobrir”.
E rimos disso.
2.
Eu sei o que é aquilo. Uma meia três quartos. Mas eu nunca vi a meia fora do corpo antes, uma coisinha meio patética e inocente quando não está agarrada à curva de uma panturrilha para então revelar uma coxa nua. Ou talvez minha intenção tenha sido mesmo colocar a meia três quartos na cena trivial com a amiga. Ser um pouco maliciosa. Aquela piadinha, aquele “você logo vai descobrir”, me dá uma estranha satisfação. Por que será? Vou ficar pensando nisso até o dia seguinte.
3.
E, no dia seguinte, chego mesmo a uma teoria. Uma balinha de 5mg de THC ajuda. O fogo estalando na salamandra ajuda. Aos vinte e poucos anos, a gente falava constantemente sobre sexo com as amigas e amigos. Aos trinta também. Todo mundo estava numa fase de conhecer muitas pessoas, se encantar, cair numas furadas, chorar por isso, depois rir da mesma situação que antes tinha feito o estômago doer, as pernas bambearem e as músicas serem um portal para todo o tipo de fantasia antecipatória. Era uma coleção sem fim de anedotas, conquistas e fracassos, que nos ocupavam um tempo enorme, um tempo que não precisava ser comprometido com lavanderia, preparo do almoço e cotações do seguro do carro.
Mas não é só essa a questão. Não é só que o tempo agora se distribui de outras formas, é gasto em outras atividades (e algumas maravilhosas, longe de mim idealizar cegamente a juventude). A questão é que a dinâmica das amizades mudou. A maioria das pessoas de quarenta e poucos está organizada em casais, e muitas amigas dessas pessoas acabam sendo amigas “compartilhadas”, amigas essas que, por sua vez, também tendem a se organizar em casais. Todo esse organograma social cria uma certa inibição generalizada. E essa inibição generalizada intensifica uma atmosfera que, por uma série de motivos – porque as pessoas estão em relações “estáveis”, porque as pessoas têm filhos, porque as pessoas não param de trabalhar – já não é nem um pouco favorável ao erotismo e ao sexo.
4.
A mudança é visível até nas amizades antigas. Os pesos e medidas mudaram, a inibição se instalou. O assunto é o cansaço, o trabalho, a guerra. Talvez as pessoas façam menos sexo, mas a questão nem é essa; a questão é que fazem em segredo e se colocam menos no mundo como seres erotizados.
Foi isso que a meia três quartos pescada do cesto de roupas me mostrou. A meia três quartos é fundamental – e me perdoe o clichê e o aspecto meio genérico de objeto sexy –, mas falar sobre a meia três quartos também é imprescindível. Porque as narrativas amplificam, apertam interruptores, mexem com a composição do ar.
5.
Dirigimos de noite para Fort Bragg. É lá que fica a lavanderia, os dois supermercados grandes, o banco. Mas não importa. Está escuro e só o que a gente vê é a auto-estrada que se transforma quase sem querer em rua principal, com as luzes amarelas e vermelhas dos carros formando halos na bruma pesada. Diving Woman, do Japanese Breakfast, toca bem alto. Ela vai dizer depois que fez o exercício de imaginar que chegava a um lugar desconhecido. Não é Fort Bragg onde ela trabalha, não é Fort Bragg da Lucy’s Laundry com as camisas de flanela girando nas máquinas cromadas. É uma cidade misteriosa atravessada pelos riscos luminosos dos carros. E há um bar na esquina. E entramos no bar. E no bar somos outras. E esse não é mais o exercício. Isso é real, é sempre possível ser outra, pegar uma narrativa tangencial. Dou uns goles no vinho dela. Falo bem de perto, e a banda toca uma trilha boa para isso. Uma trilha boa para revelarmos coisas sobre nós que, paradoxalmente, só aumentam o mistério.
No dia 10/12, nosso encontro do clube de leitura é sobre Os ratos, do Dyonélio Machado.
No mês que vem, vou divulgar a programação de leituras e bate-papos até julho de 2025. Empolgada desde já ;)
Puxar um texto desses de um cesto de roupas não é pra qualquer um. Sensacional
Uau, que texto incrível! Me teletransportei. Sempre tive medo de envelhecer e ficar careta. Virar mãe e parar de falar de sexo. Muito bom ver essas reflexões escritas por outra pessoa. A minha mãe nunca parou de falar dessas coisas, e as amigas dela chamam ela de "desbocada" haha. Adoro gente desbocada, espero que eu seja assim também. Também lembrei da entrevista da Isabel Allende no Julia gets Wise. Engraçado que ela também fala das thc gummies. Duas coisas boas pra não parar de falar sobre.