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1.
Pego um voo até Las Vegas. Caça-níqueis no aeroporto e uma calcinha de renda preta jogada no chão brilhante. Uma placa indica a direção para Uber, táxis e limosines. Tomo posse do carro alugado e dirijo pelas avenidas esbranquiçadas do sol; Las Vegas de dia, 35 graus e nenhuma sombra, é um turista de ressaca tentando abrir os olhos. Pego meu pai num hotelzinho e tocamos na direção de Utah. É engraçado começar na Sodoma e Gomorra pós-moderna para então cair no território mórmon dos desertos esculpidos pelas placas tectônicas, água e vento. O plano é passar seis dias rodando o sudoeste do estado, uma noite em cada lugar, com paradas em dois parques nacionais – Zion e Bryce Canyon –, na famosa ferradura do rio Colorado e no popular e estreito Antelope Canyon. Abril é considerado baixa temporada, mas o fato é que muita gente teve a mesma ideia que nós: nas estradas ladeadas de planícies áridas e paredões vermelhos, há uma quantidade enorme de RVs (os recreation vehicles que, no Brasil, por algum motivo, chamamos de motor home). Nos últimos anos, Utah virou um destino bastante popular.
Quando fazemos uma viagem, nossa experiência é individual ou coletiva? Vou ficar pensando nisso pelos seis próximos dias.
2.
Em 1968, um cara chamado Edward Abbey publicou um livro que se tornaria um clássico ambientalista e da literatura de natureza, Desert solitaire, um relato baseado na experiência de Abbey como ranger em um parque nacional, o Arches, no centro do estado de Utah. Naquela época, Abbey já alertava para a demanda cada vez maior dos americanos por lazer ao ar livre. Escolho aqui a palavra “alertava” porque o escritor e guarda florestal via aquilo com um prenúncio do apocalipse: quanto mais o governo investia em acesso aos parques (pavimentação de vias) e comodidades (banheiros limpos, chuveiros, lojinhas), mais o número de visitantes crescia nesses lugares naturais que deveriam, idealmente, ser mantidos intocados.
A preservação da natureza em seu estado selvagem é o ponto mais importante da argumentação de Abbey, mas acho que ele também acaba tocando em uma questão que é central para muitos lugares turísticos: a soma das buscas de milhões de pessoas por uma experiência “autêntica” acaba por arruinar a própria experiência.
Quando entrei no centro de visitantes do Bryce Canyon, um lugar encantado de milhares de “chaminés de fada” vermelhas que parecem esculpidas por uma civilização antiga, minha única pergunta para o ranger de plantão, vergonhasamente, foi: onde posso estacionar o meu carro?
3.
A loja do centro de visitantes é enorme, com uma variedade absurda de objetos que estampam o nome e a logomarca do Bryce Canyon: camiseta, adesivos, canecas térmicas, bonés, bichos de pelúcia. Na seção de livros, uma fileira inteira de exemplares do Desert solitaire. Compro um, o meu está em Porto Alegre, e vai ser bom reler o livro com outros olhos. Talvez Edward Abbey tenha razão. Talvez não devêssemos estar aqui, ou pelo menos poderíamos ter nossos acesso dificultado. Mas isso não é também um comportamento típico de turista, que gostaria que todos ao redor desaparecessem, menos ele próprio?
4.
O excesso de turismo é um assunto que me interessa bastante e, alguns anos atrás, comecei mil leituras para tentar escrever um ensaio, que no fim nunca coloquei no papel. Me identifico mais do que gostaria com as palavras de Dean MacCannel, o pesquisador que praticamente fundou os estudos sobre o turismo como o entendemos hoje:
Para as pessoas da modernidade [MacCannell escreveu isso em 1976], o que é real e autêntico parece estar em outro lugar: em outros períodos históricos e outras culturas, em estilos de vida mais puros e simples. Em outras palavras, o interesse das pessoas de hoje pela “naturalidade”, sua nostalgia e busca por autenticidade não são apenas apegos casuais e um tanto excessivos – ainda que inofensivos – por lembranças de culturas destruídas e épocas mortas. O interesse é também um componente do espírito conquistador da modernidade, e a base da sua consciência unificadora.
5.
Uma das maiores maluquices do turismo é o fato de que tentamos fazer um registro individual de algo que é claramente coletivo: deixamos de fora do enquadramento da foto todas as pessoas que estão lá fazendo exatamente o mesmo que nós, fingindo por alguns instantes – ou para a posteridade, levando em conta a duração do retrato – de que somos os únicos a desfrutar daquela linda paisagem. E há também os que escalam rochas na beira do penhasco em busca da foto mais “original” (e que no entanto já foi publicada milhões de vezes no Instagram). Em todas as vezes que vi esses heróis contemporâneos deprimentes, eles estavam borrados de medo, rastejando de quatro na beira do precipício até a posição perfeita para a fotografia.
6.
“As ideias que temos sobre as coisas que vemos já estão organizadas antes de encontrarmos essas coisas”, escreve MacCarnell. Em outras palavras, no turismo típico, o reconhecimento é mais forte do que a percepção. No fundo, há uma lógica em fotograr o que já foi fotografado; outras pessoas já emolduraram aquela paisagem para você. O turista típico não sai daquilo que já foi validado pela própria cultura do turismo.
7.
Saímos um pouco de Utah e entramos no Arizona para visitarmos a Horseshoe Bend, a ferradura do rio Colorado cuja fotografia já vi até em um hotel em Guarulhos. Deixamos o carro em um estacionamento gigantesco e caminhamos sob o sol torturante por uma paisagem que não antecipa o que estamos prestes a ver. De repente surge a fissura na rocha e, mais de mil metros pra baixo, a água do Colorado passa com a tranquilidade da distância como se fosse uma maquete feita com gel azul. É claro que aquele povo todo se debruçando sobre a grade e fazendo chamadas internacionais – coucou maman, regarde où je suis! – compremete um pouco a experiência. A paisagem pede silêncio, mas silêncio não é o que você recebe. Com um binóculo, dá pra ver três barracas na praia da ferradura e dois caiaques escorregando tranquilos pela água. Não sei se eles veêm a multidão ali em cima, mas o constraste é aterrador. Da próxima vez, quero ser a pessoa da barraca.
Naquela mesma tarde, vamos ao único acesso ao rio Colorado em mais de mil quilômetros. É de lá que saem os raftings do Grand Canyon – necessário reserva com anos de antecedência para conseguir um lugar – e os caiaques que vi lá embaixo, na ferradura. Há gente por ali, mas não muita. Entro no rio até as coxas e é tão gelado quanto o rio perto da minha casa, o que para mim é uma surpresa. Exploro a prainha. Não é o lugar mais bonito que vimos nessa viagem de paisagens geologicamente surreais, mas é o mais vazio.
Há uma mulher pintando um quadro, um casal saindo da água, uma senhora chamando dois cachorros, que ficaram presos numa ilha e não tem coragem de ir até a margem. O tempo corre diferente do tempo que corre nos mirantes dos cânions, na fileira de RVs, no engarrafamento diante dos guichês dos parques nacionais. Enfio os pés na areia e, caminhando rente ao paredão, consigo sentir aquela comunhão transcendentalista com a paisagem. Finalmente.
O livro que citei do Dean MacCannel é The tourist: a new theory of the leisure class
Esse o calendário do Clube Nevoeiro. Sempre envio o link do Zoom na véspera do encontro. Já escolhi os livros até o fim do ano, mas vou manter o mistério por mais algum tempo.
9/5 – Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8 – Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
Estou chegando agora na Nevoeiro e já me apaixonei por essa escrita, certamente vou acompanhar. Parabéns!
"Mas isso não é também um comportamento típico de turista, que gostaria que todos ao redor desaparecessem, menos ele próprio?"
Isso me lembrou um episódio da última temporada de Parts Unknown, o programa do Anthony Bourdain na CNN, em que, sentado na beira de uma piscina em um beach club em Bali, ele – já de saco cheio de tudo – reclama desse turismo instagramável e nada autêntico sem perceber que ele próprio fazia parte do problema.
PS: Esse mês faz um ano que mudei para Paris e essa edição me deu a ideia de escrever sobre o turismo em massa da perspectiva de alguém que agora mora na cidade mais turística do mundo.
PPS: Aqui tem o vídeo do Bourdain: https://youtu.be/zU6LRXQOQQE?si=r0__4-LsIE9CC3dX