1.
A tecnologia vai me salvar da tecnologia. Comprei um negócio chamado Brick, cuja propaganda vi no Instagram. É um quadradinho que você pode colocar em qualquer lugar – o meu fica na porta da geladeira – e que você usa para bloquear e desbloquear os aplicativos do telefone. Recebi o Brick numa caixinha, os criadores escreveram um bilhete à mão, estão recém começando. Na minha configuração, todos os aplicativos estão bloqueados, menos a câmera e a música. A gente tem que fazer certas coisas estúpidas, não tem jeito. E talvez isso seja menos estúpido do que acreditar em auto-controle.
2.
Vou para uma trilha que começa com um aviso sobre coiotes. Nunca vi um coiote ali, mas já ouvi um coro deles uivando em resposta à uma ambulância que passou voando na estrada. Acharam que a ambulância era um deles. Foi bonito e aterrorizante; eu olhava para a paisagem, os pinheiros, o prado, e não enxergava nada que se mexesse, só escutava os uivos ficando meio agudos, como uma chaleira fervendo. Agora são duas da tarde. Os animais não gostam desse horário. Me brickei antes de sair de casa. Passo por pinheiros caídos no último temporal e vou descendo o terreno levemente íngreme na direção do mar, as nuvens num formato estranho hoje, uma nave-mãe que quer se engolfar no azul. Minha ideia é ir contornando as falésias rumo ao sul, onde da última vez reparei num ser esquisito, um pinheiro de muitos tentáculos crescendo quase rente ao chão, os galhos meio espinhentos tão espalhados que era difícil enxergar um centro e encaixar aquilo em qualquer pré-concepção de árvore. Comecei a chamá-lo de pinheiro horizontal. Só reparei nesse pinheiro depois de ler um livro de um certo Tristan Gooley, escritor britânico adepto da navegação natural. Está errado quem acha que a gente nasce enxergando. É preciso treinar muito.
3.
Fotografo uma pessoa que vem no outro sentido da trilha para dar uma ideia de proporção. É uma mulher. Quando chega perto de mim, pergunta que horas são e diz que acabou de perder o celular. Conta que estava passando por um momento intenso e começou a cantar na beira das falésias de olhos fechados e quando abriu os olhos viu que uns pescadores ou catadores de marisco estavam olhando para ela e logo depois se deu conta que tinha perdido o celular. Uma cena californiana. Conversamos um pouco e ela diz que mora na costa de Mendocino há doze anos, veio da Baía de San Francisco, e está um pouco cansada da falta de opções dali, das poucas escolhas que o lugar oferece. Respondo a ela que estou aqui justamente por isso.
4.
De que jeito você sente o mundo a perigo quando tudo o que vê na sua frente são árvores e mais árvores?
5.
Faz uns vinte anos – metade da minha existência – que me sinto arrastada por um fluxo que não é o meu, que tento escapar da velocidade contemporânea das coisas; não quis me mudar para São Paulo quando isso parecia o próximo passo natural em uma carreira literária, larguei uma coluna de jornal quando o espaço da crônica pareceu migrar para o caça-likes e o imediatismo dos temas, me mudei para uma cidadezinha de mil habitantes em um país estrangeiro aos 36 anos, e hoje me horrorizo com a velocidade na montagem dos reels, com pessoas que só vivem de delivery e com dicas populares para relacionamentos de sucesso (“Recentemente, viralizou na internet uma regra para casais chamada 2-2-2”, de acordo com O Globo. “A cada duas semanas o casal deve ter um encontro a sós, a cada dois meses uma viagem de final de semana juntos e a cada dois anos tirar uma semana de férias sozinhos.” Sério que o casal médio está tão longe disso, minha gente?).
Ressalto que estou falando essas coisas com toda a humildade possível, sem querer cagar regra ou nada parecido, só o que eu queria dizer mesmo em resumo bem resumido é que I DID IT MY WAY. Um trecho que encontrei sublinhado no meu Quarteto de Alexandria – resquícios da minha primeira leitura – diz:
Vivemos vidas baseadas em uma seleção de histórias. Nossa visão da realidade depende de nossa posição no tempo e no espaço – não de personalidade, como gostamos de acreditar. Assim, cada interpretação é baseada em uma posição singular. Dois passos para o leste ou dois passos para o oeste, e todo o quadro muda.
6.
De que jeito você sente o mundo a perigo quando tudo o que vê na sua frente é uma árvore esquelética no meio do asfalto?
7.
A nave-mãe foi fatiada em nuvens menores e alongadas. Caminho pela borda das falésias, saltando umas pequenas quedas d’água de inverno que se misturam com a água do mar. Ao meu lado, piscinas olímpicas para monstros antigos que a maré baixa deixou criam um efeito faiscante. Deixo o prado para trás e vou percorrendo o caminho entre os ciprestes e os pinheiros chicoteados pelo vento frio do oceano. Chego diante do pinheiro horizontal. Se tem uma coisa que a gente tem gostado nos últimos tempos é acreditar na inteligência e na resiliência das árvores. Dá uma esperança. A criatura verde rastejante tem umas pinhas espinhentas e umas inflorescências bizarras que devem ser máquinas de soltar pólen. Sabe o que faz. Mais tarde, em casa, vou consultar um guia de identificação de árvores da costa do Pacífico e, após muitas hesitações e caminhos errados, vou cravar que aquilo é um pinheiro costeiro, pinus contorta. Sinto como uma vitória discreta, um lampejo de pertencimento, um pequeno passo para o oeste. Na mesma noite, tento fazer fogo na salamandra da sala com a lenha que o vizinho me deu e uns pedaços rasgados de papel. Me sento na cadeira de balanço perto do fogo curtindo o momento. O papel em queima em pouco minutos, os toquinhos de madeira queimam, mas as chamas morrem antes de incendiar a tora.
Você não sabe fazer o próprio fogo. Volte dois espaços.
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O próximo encontro do Clube Nevoeiro é no dia 12 de março. Vamos falar de Um homem só, de Cristopher Isherwood (romance de 1964 que foi adaptado para o cinema por Tom Ford em 2009).
Aqui estão nossas próximas leituras. Em breve, vou adicionar os livros de setembro e outubro.
12/3 – Um homem só, Cristopher Isherwood
9/4 – O túnel, A. B. Yehoshua
9/5 – Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8: Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
Caso alguém tenha ficado curioso com o Brick, aqui dá pra entender melhor como funciona.
O livro que mencionei do Tristan Gooley é How to read a tree: clues and patterns from bark to leaves, infelizmente não disponível em português, mas a Editora Auster lançou no Brasil outro livro dele que vale a pena, A arte perdida de ler os sinais da natureza.
Não poderia ter me identificado mais. Tenho refletido sobre como esse fluxo frenético se impõe e como ele influencia nas nossas decisões - que muitas vezes deixam de ser nossas para ser dos outros. Ontem mesmo exclui o app do Instagram na tentativa de diminuir a quantidade desenfreada de estímulos e de reencontrar um ritmo próprio. Um Brick seria bem-vindo, hehe.
Comecei salvando trechos... Quando me dei conta, salvei a publicação toda na aba "GOLD" que tenho nos favoritos...
Primeiro texto que leio teu, não sei se fui feliz na aleatoriedade da escolha ou se posso esperar o mesmo dos próximos...