Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la. É baratinho, e significa muito. Colaboradores tem acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura mensal que acontece via Zoom, às 19h. A partir de janeiro, assinantes pagos também recebem uma edição mensal que acompanhará o processo criativo do meu próximo romance.
1.
Atrito. Guarde essa palavra enquanto eu me desloco de Mendocino, Califórnia, até o box 64 de uma CTI em Porto Alegre. Dirijo por estradas que cortam povoadinhos sorridentes e pego um voo para Chicago e compro meias e um cobertor no aeroporto, onde me enrolo num canto e tento meditar, mas toda a porra da prática é baseada na respiração, e lá estou eu de novo fundida à minha mãe: como vou ficar nesse jogo mental de inspira-expira enquanto ela está sob ventilação mecânica? Há muito tempo para gastar, e ele precisa correr suave. Fatiar o tempo. Moer em pedacinhos que doem menos. Puxo papo com um casal – sou eu mesmo? –, e sabe-se lá como paramos em Lolita, o livro favorito dele. Em São Paulo, depois de duas noites em aviões, perco o último voo. Me mandam para um hotel. Atrito. Ele chega devagarinho assim que o ambiente urbano me envolve. O que me assusta, o que me causa desconforto, é o que eu já conheço e deixei para trás. Entro no box 64 depois de exatas 47 horas desde que fechei a porta de casa.
2.
Alguns dias antes disso, eu estava caminhando por um bosque de quinhentos e poucos hectares chamado Montgomery Woods. Um vapor gelado entrava pela minha garganta. O silêncio era macio e denso como num cubículo à prova de som. Há árvores milenares ali, as maiores da região, espalhadas em um tapete de samambaias e trevos. Entre 1999 e 2004, uma dessas sequoias-vermelhas foi considerada o indíviduo mais alto do mundo; para protegê-la, a árvore em questão nunca foi marcada, pois há gente maluca sempre disposta a fazer o pior, como aquele adolescente que cortou um sicômoro centenário icônico em outubro desse ano, na Inglaterra.
Faz muitos meses que estou trabalhando na tradução de um romance ambicioso sobre árvores. Quase todos os personagens, com vidas muito distintas umas das outras, espalhados por todos os Estados Unidos, vão acabar se encontrando na luta pela preservação das gigantes do noroeste do Pacífico, essa região onde escolhi morar. Foi uma tradução que aceitei fazer por uma espécie de chamado que ultrapassa a razão – talvez eu fale sobre isso outra hora –, mas o que interessa agora é que esse livro me fez ser capaz de ver melhor.
É engraçado como você costuma ver só aquilo que a linguagem já tocou. Sem a linguagem, talvez você entenda tudo como uma massa disforme de confusão. E, entendendo tudo como uma massa disforme de confusão, é provável que você não dê muita importância para aquilo. Um “passarinho” é apenas ruído de fundo. Um “sanhaço” ou uma “cambacica” são imediatamente alçados ao primeiro pano.
3.
É mais do que não dar importância. É ter medo. É querer destruir.
4.
Um trecho do romance em questão, Overstory, do Richard Powers, sobre uma floresta de sequoias:
É possível perdoar uma pessoa que, diante daquele apodrecimento glorioso, pense que velho signifique decadente, que esses grossos tapetes de decomposição são cemitérios de celulose que precisam de um machado rejuvenescedor.
Ela entende porque a espécie dela irá sempre temer esses matos densos e sufocados, onde a beleza das árvores solitárias dá lugar a algo amontoado, assustador e insano. Quando as fábulas se tornam apavorantes, quando os filmes de assassinos em série alcançam o horror primitivo, é aqui que as crianças condenadas e os adolescentes rebeldes precisam vagar.
5.
Meu horror costuma ser moderno, não primitivo. Quem acompanha essa Nevoeiro há algum tempo talvez lembre do tal desenho que fiz no jardim de infância que respondia à pergunta da professora: Do que você tem medo? Enquanto os colegas desenhavam leões, cobras, monstros, vampiros, eu desenhei uma tomada.
Meu horror é uma faca de cozinha. Meu horror é um vazamento silencioso de gás. Meu horror é o que eu conheço e o que é derivado do que eu conheço. Minha mãe e os tubos no box 64.
6.
Depois do Montgomery Woods, eu e Melissa vamos para um conjunto de chalés e banheiras de água quente com cheiro de enxofre cravados no meio da floresta. Um lugar de águas termais fundado em 1858. Aqui, usar roupa na área das piscinas é “opcional”, mas só um casal mais jovem do que nós está usando biquíni e calção. Quando em Roma, faça como os romanos. Fico nua, e talvez em nada eu lembre aquela pessoa que entrava na piscina do prédio de camiseta até os joelhos aos dezesseis anos. Na primeira banheira de água quente, há quatro pessoas nuas de pé no meio da água, os braços esticados segurando livros grossos, envelopados pelo silêncio úmido da floresta. Celulares não são permitidos aqui e, de toda a maneira, não haveria sinal. A sensação geral – a quietude quase meditativa dos desconhecidos, o ambiente natural – é de que estamos levemente deslocadas do mundo “de verdade”. Mas o estranhamento parece suave e deliciosamente intrigante. É curioso que, duas semanas mais tarde, enquanto penso na floresta e vivo a CTI, uma leitora me escreva longas mensagens do Instagram arriscando-se numa análise do que há de subjacente na minha obra literária: “(…) um movimento de busca da diferença, do estranhamento, e não da possibilidade de extensão do igual. Fiquei com essa impressão dos deslocamento que seus personagens fazem no espaço, pela geografia, como se estivessem buscando alguma coisa na estranheza. Como se a estranheza tivesse que revelar alguma coisa ou transformar algo dentro deles e delas. O atrito com a diferença.”
E, de novo, lá está o atrito. Mas arrisco dizer: a fricção é maior nos caminhos percorridos.
Minha mãe está melhorando. Passou por maus bocados, mas está se recuperando bem. Agradeço demais a todas e todos que mandaram suas boas vibrações. Segue a luta.
Aqui está a agenda das leituras do Clube Nevoeiro, de janeiro a julho. Os encontros ocorrem viam Zoom, sempre às 19h (horário de Brasília). Colaboradores recebem o link do encontro via e-mail.
8/1: Por que o budismo funciona, Robert Wright
7/2: Migrações, Charlotte McConaghy
12/3: Um homem só, Christopher Isherwood
9/4: O túnel, A. B. Yehoshua
9/5: Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6: Temporada de furacões, Fernanda Melchor
9/7: O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
Adorei o texto! Melhoras para a sua mãe! Se cuida! Abraço
texto maravilhoso como sempre. muita força pra ti e tua mãe <3