Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la. Veja ao final detalhes sobre as edições exclusivas que vão rolar a partir de janeiro. Além disso, assinantes pagos têm acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura que acontece via Zoom, sempre às 19h. Já escolhi as leituras do primeiro semestre de 2024, que você pode conferir no fim da edição.
1.
Todo mundo já teve sua fase Britney careca, como diz um amigo meu. A intensidade pode variar, certamente; os pés e as jacas vêm em tamanhos diversos. Na minha fase Britney careca, fiquei uma pessoa esquelética virada em peitos que jantava brigadeiro de panela e tentava tocar no violão a música mais deprê de toda a discografia do Kurt Vile. Lembro do Natal mais triste da vida, mas lembro também que não fiquei na lona por muito tempo, e tenho a memória clara do momento em que racionalizei minha ressureição: tirei de trás da porta um mural de cortiça todo empoeirado e disse para mim mesma que ia retomar naquele instante o projeto do meu romance, O Clube dos Jardineiros de Fumaça. Comecei a anotar coisas em fichas pautadas e prender as fichas com percevejos. Dá pra dizer que a literatura me salvou, o que seria bem bonitinho, mas só a metade da verdade. O fato é que essa fase Britney careca me veio à cabeça nos últimos dias por duas razões: porque assisti de novo à trilogia do Richard Linklater, Antes do amanhecer, Antes do pôr-do-sol, Antes da meia-noite; porque uma pessoa do núcleo duro dessa fase de ansiedade e decisões erradas decidiu me mandar uma mensagem destilando ressentimento na última quarta-feira, sete anos depois de entrar em um táxi para o aeroporto e sumir da minha vida.
2.
É simples entender porque a maioria das histórias de amor em livros e filmes são, na verdade, histórias de paixão, história dos primeiros traços de enamoramento: qualquer narrativa precisa de um conflito, e conflito significa basicamente um personagem saindo de um estado de equilíbrio qualquer (vale também equilíbrio ruim) e sendo sacudido pelo acontecimento x, que, no caso das histórias em questão, é a pessoa x. Poderíamos falar horas sobre como essas histórias ficcionais moldam nossos desejos e expectativas, sobre o efeito de crescer assistindo comédias românticas e então querer as cores estouradas no acizentado mundo real. Mas o que quero dizer não é isso. O que quero dizer é que a maioria dessas histórias, os beijos na chuva, as passagens compradas no balcão do aeroporto, os telefonemas na madrugada, a metade disso tudo não é amor, é só loucura.
3.
A pergunta que coloca em movimento os dois primeiros filmes da trilogia do Antes é: será que essas pessoas vão ficar juntas? No terceiro filme, é preciso inverter a pergunta: será que essas pessoas vão se separar?
4.
Melissa e eu conversamos sobre isso em uma caminhada antes do pôr-do-sol: narrativas sobre casamento não costumam ser muito positivas – também nos vem à cabeça o filme História de um casamento –, mas eu defendo que isso diz menos sobre os casamentos reais do que sobre a natureza das narrativas de ficção; não sabemos se Céline e Jesse, o casal da trilogia, tem aquele tipo de briga o tempo todo ou se estamos presenciando um ponto crucial da linha do tempo amorosa, mas certamente sabemos que equilíbrio e felicidade e certezas não geram ficção, então é preciso ir lá e recortar um momento atribulado. De maneira que temos esse monte de representações não muito laudatórias sobre relações amorosas de longa duração, e não quero com isso dizer que a falta de modelos ficcionais de felicidade envenenam os casamentos reais, mas acabo pensando se seria possível um dia que eu escrevesse um romance sobre um amor bonito e duradouro. Não no próximo, concluo. O próximo será sombrio demais para comportar uma coisa assim.
5.
É a luz acobreada de um fim de tarde que me leva de volta à minha fase Britney careca. Vou explicar. Posto uma foto nos stories do Instagram, metade grama amarela, metade céu respingado de nuvens e, no encontro dessas cores, uma linhazinha de casas e ciprestes. Uma foto tranquila, paisagem de quebra-cabeça. E aí aquela pessoa de muitos anos atrás, a que entrou no táxi em uma rua de Porto Alegre para então sumir da minha vida, me escreve o seguinte: “gente. é quase cômico como sua vida sempre foi realmente muito fácil e boa hahahaha meu deus.”
6.
Em certo ponto do livro Por que o budismo funciona, Robert Wright discorre sobre como a opinião que uma pessoa tem de nós pode gerar uma série de pensamentos espiralados e torturantes em nossa mente, mesmo que aquela pessoa não faça (mais) parte do nosso cotidiano e que, portanto, a sua opinião/percepção não tenha efeito algum em nossa vida. Wright diz que a psicologia evolutiva explica essa reação como sendo algo necessário se você vive de caçar e coletar frutos em uma aldeiazinha minúscula da pré-história em que todo mundo se conhece. A versão contemporânea disso seria algo residual e normalmente não muito positiva.
É claro que quero gritar para a pessoa que minha vida nem sempre foi fácil e boa e que continua nem sempre sendo fácil e boa, e o que há de fácil e boa nela tem bastante relação com as coisas que eu fiz e as decisões que tomei. Se há alguma sorte nisso, a maior delas foi ter ganhado na loteria da saúde mental. Mas, considerando meu rol de familiares, de repente até posso reivindicar algum mérito nisso. Ou dizer, de novo: a literatura provavelmente me salvou.
7.
Em um dia nada fácil e nada bom, atropelada pelos problemas que se desenrolam a dez mil quilômetros, Melissa me leva para ver as ondas no mar furioso de outono. O Pacífico borrifou todo o ar, e a luz desce filtrada por partículas de sal. Porque a vida nem sempre é fácil e boa, eu escolhi a terapia da floresta e do mar. Olho para uma árvore completamente inclinada, na beira da falésia. Fico empolgada com a beleza e porque essas coníferas sobre as falésias, tomando vento e sal na cara o dia inteiro, são minhas novas heroínas. Sorrio um pouco. “Viu a árvore e já melhorou”, Melissa diz. Na manhã seguinte, nos damos conta que esquecemos de comprar ovos. Há só um na geladeira. Dividimos o ovo.
A partir de janeiro, além das edições costumeiras abertas a todos, vou escrever para os colaboradores uma espécie de “diário” do meu trabalho no meu novo romance. Serão edições mensais, e vão fazer algum tipo de radiografia imprevisível dos doze meses em que pretendo me dedicar quase que exclusivamente a esse novo projeto de ficção.
Nosso próximo encontro do Clube Nevoeiro será sobre Uma tristeza infinita, do Antônio Xerxenesky, no dia 5/12, às 19h. Como sempre, envio o link do Zoom um dia antes para os colaboradores.
Já defini as leituras do primeiro semestre de 2024. Vamos começar com budismo e depois voltaremos para a ficção, passando por um belo livro australiano que li ano passado, romances do Oriente Médio (Israel e Egito) e pela violência torrencial de Fernanda Melchor. Eis a lista (ainda sem as datas):
Janeiro: Por que o budismo funciona, Robert Wright
Fevereiro: Migrações, Charlotte McConaghy
Março: Um homem só, Christopher Isherwood
Abril: O túnel, A. B. Yehoshua
Maio: Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
Junho: Temporada de furacões, Fernanda Melchor
Já leram algum desses? Um dos objetivos desse clube é pegar livros que não estão necessariamente nos holofotes, ou que foram já publicados há algum tempo. Vai ser divertido :)
Que coisa mais linda. Não tem nada mais bonito do que dividir o ovo ❤️
Gostei da proposta do "Diário", adoro ver o plano de fundo das criações artísticas, sempre tão diferentes da obra pronta e cheio de momentos inesperados.