Essa newsletter continua gratuita, mas, se você gosta dela, considere apoiá-la por R$10 mensais. Colaboradores têm acesso ao Clube Nevoeiro, um clube de leitura que acontece via Zoom, sempre às 19h. Mais informações ao final.
1.
Depois que meu confortável e esteticamente aprazível zafu chega, demoro uns dias até de fato começar uma rotina de meditação. O que acontece é que acho que vou “fazer errado”, e que, uma vez envolta na nuvem tóxica do fracasso, vai ser impossível corrigir o rumo. Claro que essa não é a única coisa que me causa essa insegurança catastrófica dos começos: também sou assim com a escrita, um pouco menos com essa Nevoeiro, mas, ei, nenhuma edição nasce sem um esqueminha de anotações, aquela espécie de rede de segurança esperando o pior da sua pirueta no ar. É isso. O zafu me olha do canto da sala, e eu sem coragem. Vou ter que começar uma versão mais simples disso, alguém segurando a minha mão e me conduzindo, então acabo baixando um app de meditação. Parece errado. Não é esse aparelhinho aqui a origem da nossa falta de foco, do nosso tribalismo rastaquera, da vontade de resolver tudo em inspirações e expirações conscientes?
Ouço a voz tranquila desse homem me orientando e respiro. É tão estupidamente sincera que, no início, tenho dificuldade de entrar no jogo. Claro. Está a léguas de distância do que nosso olhar cínico aprendeu a registrar. Mais tarde, vou me lembrar de um trecho de Ioga, do Emmanuel Carrère, que fala exatamente disso; ao assistir a um documentário sobre Ram Dass (né Richard Alpert) – “apóstolo do LSD” e posterior místico iluminado –, Carrère comenta:
Imaginei o sarcasmo e mesmo a aversão que ele teria provocado em [George] Orwell. (…), esse velho sentencioso, representante exemplar da tribo dos iogues barbudos, vegetarianos usando sandálias, que Orwell tomava não por patetas inofensivos, mas definitivamente por cretinos nefastos. E eu me pergunto também, olhando para esses meninos de gorro peruano que abraçam as árvores: como é possível que a sensação de verdadeiro, o peso da experiência e mesmo a fruição estética estejam tão claramente do lado de Orwell e não do de Ram Dass nem de nenhum dos mestres espirituais autoproclamados que declamam seu discurso sobre a expansão da consciência, o poder do momento presente e a paz interior?
2.
Na mesma semana em que começo com as curtas sessões de meditação, descubro que há ratos na cabana japonesa do Mitchell. Melissa salvou esse lugar com um e-mail lindo para a sobrinha dele, que estava cogitando demoli-lo. Melissa arrumou, esfregou, aspirou, desinfetou. E, no entanto, há ratos, ou melhor, não exatamente os roedores em si, mas uns cocozinhos que tento identificar analisando um infográfico necessário para a vida nos Estados Unidos rural, serão camundongos, ratos-do-telhado ou ratos-da-Noruega? Difícil entender o tamanho dos excrementos em polegadas. Nunca vou respeitar um sistema de medida que precisa recorrer a frações.
3.
Não queremos matar os ratinhos que passeiam ali de noite. Não são muito diferentes dos esquilos que achamos fofos, exceto que não os toleramos embaixo do nosso teto. A cabana japonesa não é nossa, mas guarda a memória do Mitchell, sua cadeira de meditação, os desenhos baseados em fábulas orientais, as máscaras esquisitas na parede. E a sobrinha disse que poderíamos usar como escritório. Um teto todo seu. Escolhemos substâncias naturais repelentes. Um muro imaginário que cheira a hortelã e alecrim. Há toda uma floresta lá fora. Basta irem embora.
4.
A vida na tela assusta mais. Nas redes sociais, em nome do identitarismo, questões complexas são achatadas até o estado de Gre-Nal. Você precisa aderir a um conjunto de ideias. Compartilhar o que esperam que você compartilhe. Silenciar sobre todo o resto. A ideia é não causar surpresas ou ruídos. Dúvidas não são bem-vindas. Ponderações? Jamais. As causas são escolhidas a dedo, não por você, mas por puro e simples tribalismo. As pessoas desaparecem. Em nome do que elas acham que são.
5.
Uma frase na newsletter da Ariela K.: “Se as suas ideias estão acima das pessoas, você está abaixo de ser uma pessoa. Você precisa recuperar o potencial de ser uma pessoa.”
6.
Talvez eu não tenha condições intelectuais de discorrer sobre esse contraste, ideias e pessoas, mas o que posso dizer é que tenho um instinto sobre isso, sou uma pessoa de instintos e sensações e sempre fui, ao longo de toda a vida, uma pessoa de pessoas; não é que eu não ache as ideias importantes, as causas importantes, a coletividade importante, mas o fato é que enxergo muito mais os indivíduos do que os conjuntos; como se meus olhos estivessem programados para isso. Meu problema com causas é que eu nunca quero comprar o pacote tudo. Tenho dúvidas demais para fazer isso. Sou ponderada demais. Estou sempre vendo múltiplos lados, revendo posicionamentos ao longo da vida, desconfiando do meu próprio ponto de vista e, obviamente, do ponto de vista dos outros. Sou enfática nas paixões, nas coisas miúdas, a textura de um tronco que eu paro para olhar, o sabor de um tomate, uma caminhada, sentar no sol com um livro, um encontro virtual com pessoas que se empolgam com literatura. Não sou, no entanto, enfática ou assertiva em opiniões sobre grandes causas, grandes temas. Como ser sem cometer injustiças? Como ser sem ser levada por ideias abstratas e totalizantes, deixando assim de olhar para as pessoas?
7.
Talvez eu esteja, afinal de contas, me tornando mais Ram Dass que George Orwell.
8.
Os repelentes naturais para roedores parecem estar funcionando. Dois, três dias sem cocozinhos dentro da cabana japonesa. Radick, o faz-tudo tcheco, limpou aquilo que poderia ser um ninho, no ângulo do teto da cozinha. A casa está parecendo acolhedora, não mais um depósito cheirando a mofo onde os ratos passeiam de noite. Um teto todo seu. É o que todos querem. Tenho pena dos ratos. Há toda uma floresta lá fora. Mas aqui é bem mais quentinho.
Aqui está A Diletante, da Ariela K., uma das minhas newsletters favoritas.
O próximo encontro do Clube Nevoeiro, dia 7 de novembro, às 19h, será sobre Filho de Jesus (Denis Johnson). Em 5 de dezembro, discutiremos Tristeza infinita, do Antonio Xerxenesky, que ganhou na votação popular entre os colaboradores. E em janeiro será a vez de ousarmos juntos e não termos vergonha de discutir esse excelente livro chamado Por que o budismo funciona, de Robert Wright. O resto da programação do primeiro semestre de 2024 virá em breve!
Carol, gostei demais dessa edição. Me sinto da mesma forma: incapaz de ser assertiva em grandes temas, ou de abraçar grandes causas em sua totalidade. Além do medo de cometer injustiças, acho que existe também uma prática muito importante que é a de simplesmente admitir que não sabemos o suficiente, às vezes, para se posicionar dentro de um Grande Tema específico. Abraçar o conjunto de coisas que espera-se que abracemos, além de nos apagar, evidencia esse lugar muito perigoso do não podermos fazer saber que não sabemos. Enfim.
Pessoas que são de pessoas - amei a definição :) um beijo!
A seção 6... 🤍