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1.
Releio Ioga, do Emmanuel Carrère e, ainda que sua trajetória naquelas 342 páginas tenha o levado a uma internação psiquiátrica com sessões de eletroconvulsoterapia, decido acreditar no poder da meditação. Carrère é um praticante há décadas. Outras almas atormentadas já tentaram. O dharma bum Jack Kerouac, tentando largar a bebida e para isso meditando todos os dias e escalando uma montanha intimidadora. A obsessiva Alison Bechdel, em sua busca desenfreada por vigor físico e iluminação, e que, assim como Carrère, relatou uma experiência num retiro de silêncio em O segredo da força sobre-humana. Traduzi esse livro, a gente acaba se afeiçoando. E aí, na mesma semana da releitura de Ioga, descubro que o tradutor admirável de tantas pedreiras, Caetano Galindo, caiu nas graças da meditação: leu vinte livros sobre o assunto e mencionou dois na newsletter epistolar que mantém com a Martha Batalha, livros bem porta de entrada, bem best sellers. Um deles é Por que o budismo funciona. Diz um dos textinho de exaltação ao livro: "Esperei a vida inteira por uma explicação lúcida e fácil de ler sobre o budismo feita por uma mente cética e rigorosa. Aqui está. Esta é uma viagem científica e espiritual diferente de qualquer outra que já fiz.”
Mente cética e rigorosa. Parece feito para mim. Vou na livraria local e, de maneira previsível, porque aqui, bem, é a Califórnia, encontro o livro amarelinho em destaque ostensivo. No dia seguinte, pelas cinco da manhã – acho que esse horário não é um mero adorno narrativo –, entro na Amazon e compro um zafu, a tal almofada de meditação. A mais bonita que consegui achar: deslumbrante, creme, exalando espiritualidade, com um colchonetezinho para garantir o conforto dos joelhos. Sinto que vou viver cem anos só de olhar para ela.
2.
Tenho a sensação embaraçosa de que comecei errado. Budismo não tem algo a ver com desapego? Mas o zafu é um objeto tão bonito! E eu adoro objetos bonitos. O amigo espiritualmente superior de Carrère tinha por hábito rasgar as páginas dos livros à medida que lia, não guardava nada que não fosse o estritamente necessário. No outro extremo da iluminação, aqui estou eu, sempre marcando mudanças de estilo de vida com bens de consumo. Botas de trilha. Mochila de 45 litros. Caiaque. Raquete de tênis. Tudo bem, você dirá em minha defesa, não se pode praticar essas atividades sem esses objetos, não se pode viver nesse estado ensolarado sem um chapéu de caubói (oi?), mas o fato é que, em primeiro lugar, eu acabo injetando um significado nessas coisas em níveis que a espiritualidade-desprendida-do-mundo-concreto acharia inadmissíveis; em segundo lugar, qualquer tipo de superfície serviria para eu começar a tal prática da meditação, e eu sempre poderia ganhar um pouco de ergonomia com uma almofadinha qualquer, catada do sofá da sala. Mas não.
A entrega do zafu está atrasada, portanto atrasado está o meu processo de iluminação. Por uma ironia dos astros, a almofada-fetiche chegará no mesmo dia que meu novo iphone.
3.
Tenho uma amiga que tem um bordão: “é bom para mim”. Diz isso sobre várias coisas, de mergulhos em águas gélidas a brócolis a terapias não-convencionais. Durante algumas semanas, no início do ano, correu comigo e fez caretas de agonia o tempo inteiro. Nem no final a endorfina batia. Por que então correr? E vinha o bordão: “é bom para mim”. Sei que ela é alguém com uma personalidade pragmática, lutando contra décadas de educação cristã restritiva, mas acho que podemos ler esse “é bom para mim” como um indicador dos tempos em que vivemos. “É bom para mim” – e não “eu me sinto bem quando faço isso” – parece deixar claro que, hoje em dia, até nosso bem-estar físico e emocional segue a lógica da produtividade.
4.
E como se sentir produzindo bem-estar, músculos que não vão atrofiar, vitaminas que nos manterão vivos até depois do apocalipse climático, uma frequência cardíaca previsível e inofensiva, como sentir que estamos lendo coisas que engrandecem nosso espírito, vivendo momentos inesquecíveis com amigos, dormindo as horas de sono necessárias? Registrando tudo, obviamente. Contabilizando. Nunca na vida tivemos tantos dados sobre nossos hábitos. Número de passos, minutos de exercício, quanto tempo em sono profundo, quanto tempo em REM, as músicas em rankings de mais ouvidas do ano, os livros que terminamos devidamente avaliados com estrelas, e todo a vertigem de imagens, lugares, rostos, encontros. Somos a mais completa pesquisa científica de nós mesmos.
5.
Os perigos disso tudo são dois, e falo isso fazendo uma auto-análise rigorosa, pensando nas tantas vezes que esperei para sair para caminhar porque meu apple watch estava carregando, nas tantas vezes – todos os dias – que analisei meu gráfico do sono imediatamente após acordar, nas tantas vezes que registramos eventos em uma minúcia visual absurda, fotografias que provavelmente nunca mais olharemos de novo. O primeiro perigo é: ter a sensação de que o não registro invalida a experiência. Se não há gravação, se não há dados, é como se aquilo não houvesse existido. Se não guardo os dados, não colho os benefícios: a caminhada não registrada não evitará o Alzheimer; mas, se eu fechar os aneizinhos do meu smart watch todos os dias, meu futuro será brilhante, vigoroso e saudável.
O segundo perigo é não dar valor ao que não pode ser contabilizado. O que é um pouco diferente do primeiro perigo. Não se trata de você não ter um registro das suas idas à academia; se trata de você fazer coisas cujos benefícios não são mensuráveis. E que talvez, vamos combinar, talvez nem tragam benefícios afinal de contas. Só de usar essa palavra, já sinto que caí na armadilha de novo.
6.
Quando meu zafu chega, sei exatamente aonde quero ir com ele. Saio de casa carregando a caixa e atravesso o pátio. Passo pelos carvalhos, rododendros e arbustos de huckleberry crescidos demais enquanto exalo o cheiro úmido da floresta. Entro na cabana que era do Mitchell, que ele chamava de japanese house. O lugar onde ele escrevia, lia e, muito provavelmente, meditava. O lugar que ele construiu com as próprias mãos. Mitchell, para quem chegou nessa newsletter agora, era meu landlord e amigo próximo de 87 anos. Faleceu dia 5 de junho.
“O cara mais doce que eu já conheci”, disse uma vez uma amiga dele. E é verdade. Nunca vi alguém com aquela paz de espírito, aquela tranquilidade, aquela capacidade de ver o lado bom das coisas. Quando a esposa dele desenvolveu demência, Mitchell conseguiu ver algum lado bom nisso, e me disse que os dois estavam mais próximos que nunca e que ele achava empolgante, tão tarde na vida, estar aprendendo a cuidar de alguém daquela maneira.
Nunca vi o Mitchell demonstrar rancor, raiva, exasperação. Qual era o segredo? Talvez esse lugar me conte. Talvez as estantes cheias de livros sobre zen budismo que estou vendo aqui. Talvez os cadernos de viagens à Índia. Talvez o meu zafu. Será que um dia vou conseguir ser pelo menos um pouquinho Mitchell?
Alguma coisa começa agora, nessa cabana.
Ou já começou há algum tempo.
Aqui está a cartinha do Caetano Galindo que fala de suas incursões pela meditação.
O zafu não é uma almofada qualquer. Que delícia, gente.
O próximo encontro do Clube Nevoeiro, dia 7 de novembro, às 19h, será sobre Filho de Jesus (Denis Johnson). Nosso livro de dezembro, que ganhou no voto popular com 36.2% dos votos (o único momento de democracia nesse clube) é Tristeza infinita, do Antonio Xerxenesky. O encontro ocorrerá no dia 5/12.
Já estou dedicada à programação 2024 do clube. E possivelmente Por que o budismo funciona, do Robert Wright, será a leitura de janeiro. Então providencie o seu zafu e vamos juntos nessa jornada.
Newsletter maravilhosa ❤️
Mais uma vez termino a leitura emocionada.