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1.
Em 21 de setembro de 2015, três pessoas tomavam café da manhã juntas no Rollerville Café, um lugar cuja fachada exibe o desenho anatomicamente esquisito de uma garçonete sobre patins: Jamai Gayle, Sally Scales e Asha Kreimer. Asha nem tocou na comida e, quando um sujeito conversador se aproximou da mesa e começou a falar sobre pesca no Ártico, ela deu umas risadas perturbadoras que pareciam conter um princípio de choro. Disse depois que precisava ir ao banheiro. O banheiro ficava do lado de fora.
O Rollerville Café ocupa desde 2007 uma casinha bege de madeira à beira da Highway 1, a mítica estrada que percorre a costa da Califórnia, com seu trechos mais glamourosos (Big Sur) e outros quase esquecidos. O lugar onde o café está não atrai exatamente um enxame de turistas. A treze minutos de caminhada – ou quatro de carro – na direção oeste, o Pacífico arremessa suas ondas sobre falésias quase verticais de trinta e cinco metros de altura. Há um farol. O início de uma trilha. Uma fileira de ciprestes-de-Monterey com fungos laranja nos troncos estriados. Asha pode ter caminhado nessa direção (tinha 26 anos). Asha pode ter acenado para um carro na Highway 1 e entrado no carro e sido levada para um lugar ermo onde qualquer coisa pode ter acontecido (nascida no Havaí, cidadã australiana, morando com Jamai há alguns anos na costa da Califórnia). Asha Kreimer pode ter conseguido uma carona e recomeçado a vida sob uma nova identidade. O riso desfigurado de dor foi a última imagem que Jamai guardou dela.
2.
E se, toda a vez que a sirene de uma ambulância soasse, você soubesse o que está acontecendo? Em um lugar tão pequeno – uma região costeira com menos de quinze mil habitantes –, me sinto meio íntima de todas as tragédias locais. Não chega a acontecer essa onisciência da ambulância, mas quase: da última vez que o alarme do corpo de bombeiros soou, com aquele som estridente que parece um alerta de bombardeio aéreo, eu soube em seguida que um homem de caiaque tinha morrido no mar. Um dos paramédicos que veio levar meu vizinho para o hospital alguns meses atrás é um rosto que eu já vi no bar da cidade, bebendo sob a cabeça de cervo da parede – taxidermia gasta que precisava de uma restauração no focinho.
Asha Kreimer desapareceu quando eu estava por aqui, antes de efetivamente me mudar, um período em que passei fazendo pesquisa para escrever O Clube dos Jardineiros de Fumaça. Vi os cartazes com o rosto dela no mercado, no correio, nos postes de todas as cidadezinhas. Naquele tempo, não era só eu que enxergava maconha por todos os lados; a região vivia em função disso nas zonas escuras da lei, o dono do hotel mais luxuoso garantia uma renda considerável por baixo dos panos, velhos hippies tinham construído uma vida inteira graças aos pés de canábis, e havia um acordo tácito de não perguntar o que uma pessoa fazia quando você a conhecia em algum lugar. Isso tudo terminou com a progressiva legalização da maconha em muitos estados do país, o preço despencando em função disso, as pessoas não conseguindo mais desovar sua produção no mercado ilegal. Mas Asha Kreimer não tinha nada a ver com isso. Era só uma menina morando no meio da floresta.
3.
A humanidade não costuma associar a floresta a coisas muito positivas. Criaturas violentas. Tragédias inesperadas. Nosso medo ancestral da escuridão. No romance que estou traduzindo, The Overstory, do Richard Powers, o narrador sugere que os lenhadores que dizimaram as florestas do noroeste do Pacífico se achavam imbuídos da missão de trazer a luz à civilização; a floresta seria o oposto do céu, simbolicamente falando. Acontece mesmo uma coisa engraçada com a civilização: às vezes parece que não atualizamos nossos medos de acordo com o tempo em que vivemos. Temos mais medo de ataques de ursos e tubarões do que de gente bêbada na estrada, embora estatisticamente a chance de sofrermos uma fatalidade pela imprudência de um motorista seja mil vezes maior do que por um ataque de uma criatura selvagem.
“Out of the woods”, aliás, é uma expressão idiomática. Você diz que alguém “saiu da floresta” quando esse alguém está fora de perigo. O tratamento médico deu certo, a pessoa está “out of the woods”. O casal superou a crise, o casal está “out of the woods”.
4.
Antes de desaparecer, Asha Kreimer não dormia havia cinco dias. Tinha episódios catatônicos frequentes e, no dia anterior ao passeio que culminou na parada no Rollerville Café, fora levada por Jamai ao hospital local para uma avaliação psicológica. Segundo testemunhas, Asha Kreimer gritava “Eu não superei a morte do meu pai”. O hospital não tinha nenhum especialista e dispensou a garota em surto. Jamai Gayle a levaria a um psiquiatra na segunda-feira, não era possível achar ninguém para vê-la no fim de semana. Então antes, o passeio. Mudar de ares, ver o mar. Quando desapareceu, Asha estava de pés descalços, sem dinheiro, cartões, celular, documentos. Seu casaco foi mais tarde encontrado perto do café.
5.
Há uma série documental disponível na Netflix chamada Montanha Mortal. E lá estão, na abertura, as montanhas forradas de coníferas, com bolsões de nevoeiro pairando sobre o dossel da floresta como se fossem a manifestação de espíritos malignos – aprendi a fazer essas descrições com o Richard Powers (mentira, eu já sabia o que era o dossel de uma floresta). A série trata de um local específico do condado de Humboldt chamado Alder Point, uma suposta terra-sem-lei de cultivadores de maconha. O gancho é o desaparecimento de um cara da costa leste, e a narração vai revelando que desaparecimentos não são apenas comuns em Humboldt como superam em inúmeras vezes a média de desaparecimentos em qualquer outra região do país. E isso, segundo eles, teria a ver com o fato de que Humboldt é, essencialmente, um lugar onde se cultiva maconha, um território tão extenso e selvagem e despovoado, envolto em neblina e brutalidade.
A mãe de Asha Kreimer aparece no documentário, procurando pela filha, espalhando cartazes. Quando vi aquilo, alguns anos atrás, achei absurdo, sensacionalista. Em primeiro lugar, Asha não tinha desaparecido em Humboldt. Em segundo lugar, as investigações nunca associaram o seu desaparecimento à indústria da maconha.
Mas a floresta. Ah, o imaginário da floresta. De certa maneira, também me aproveitei dele no meu livro – e por certo estou fazendo isso nesse momento também –, e Asha Kreimer acabou inspirando minha personagem Marina Nunes, embora eu tenha tido a decência de chamar aquela história de ficção.
6.
O que aconteceu, descobri semana passada quando Asha Kreimer e seu cold case voltaram à imprensa local devido ao “aniversário” de oito anos do desaparecimento, o que realmente aconteceu foi que a mãe de Asha viu no documentário uma chance de dar mais visibilidade à busca pela filha. Assim, colocou a garota em uma narrativa de violência causada pelo cultivo ilegal de maconha, Asha, que talvez nunca tenha estado em Humboldt – quem sabe só para ver as sequoias-vermelhas de um tamanho que só se encontra lá – Asha, que com certeza nunca esteve em Alder Point, Asha, que era só uma menina vivendo em uma cabana no meio da floresta de Albion.
Sua mãe ainda vive na Austrália, mas viaja de dois em dois meses até a Califórnia para seguir buscando por Asha. Estava na região na semana passada, quando disse a um jornalista: “Asha com certeza está por aqui, e eu gostaria de dizer que sou muito grata pela ajuda de todos. Tenho muita esperança de que vou encontrar ela um dia”.
7.
Da última vez que fui ver as sequoias-vermelhas descomunais de Humboldt, entrei num loja de conveniências e dei de cara com um cartaz com a foto de Asha. Fazia tempo que eu não pensava nela. O cartaz dizia que Asha Kreimer fora vista na região em 2021, que tinha uma tatuagem de um triângulo no pulso, que às vezes parecia muito desinibida, que frequentemente estava na companhia de pessoas em situação de rua. No canto inferior direito, o telefone e o e-mail da mãe. Infelizmente, acho que isso diz muito mais sobre a mãe do que diz sobre Asha.
* Nosso próximo encontro do Clube Nevoeiro é dia 5 de outubro, às 19h, sobre Ioga, de Emmanuel Carrère. Em 7 de novembro, debateremos Filhos de Jesus, de Denis Johnson e, em dezembro, o vencedor entre esses quatros romances brasileiros: Pandora (Ana Paula Pacheco), Vale o que tá escrito (Dan), Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (Elvira Vigna) e Uma tristeza infinita (Antonio Xerxenesky). Em breve, vou fechar a programação do primeiro semestre de 2024.
que bom que tu tá traduzindo the overstory. eu me encantei tanto com esse livro alguns anos atrás e não conseguia entender como não tinha sido lançado no brasil