1.
Dois motoqueiros curitibanos que alugaram Harleys em Los Angeles vêm passar o fim de semana na minha casa. O ponto mais ao norte da viagem. Pegam a 128 e passam pelas vinícolas do vale e depois pela floresta de sequoias, com os raios de luz que aparecem e desaparecem entre as agulhas. Quando chegam a poucos quilômetros do Pacífico, o entorno está envelopado por neblina. Acham isso bom. São metaleiros. Nunca encontrei esses dois antes e de repente eles estão entrando no meu pátio com a sonoplastia do apocalipse. Conheço Y. do Instagram, e T. me é apresentado por Y. como “a lenda do black metal curitibano”. Uns doces de pessoas. Em um fim de tarde sem neblina, sentamos nas falésias e tomamos vinho olhando centenas de cormorões negros se atirarem de uma pedra ao mesmo tempo.
“A gente tá vivendo esse dia, meu.”
Os dois motoqueiros têm uma vibração carpe diem que combina com o jeito que eu e a Melissa levamos a vida. Mas essa visita é mais do que uma sincronicidade improvável; uma visita tem o poder de ressignificar o lugar onde você mora. Primeiro porque, ao relatar sua experiência para os recém chegados, alguma coisa na sua própria compreensão da experiência muda. Segundo porque o olhar do Outro adiciona alguma coisa nova ao lugar, ou então faz você se lembrar de coisas que a rotina tinha solapado. A visita, em resumo, atua como uma espécie de prisma: o lugar sofre uma refração, se transforma, e sua relação com ele é renovada.
2.
De lugares para pessoas: ouvi falar da Esther Perel, terapeuta especializada em casais, graças a uma crônica da Martha Batalha. Assisti ao TED Talk da Perel no Youtube e imediatamente encomendei os dois livros da psicóloga belga. Talvez eu volte a esse assunto nas próximas edições, mas o que me interessa agora é um ponto específico. Esther Perel percorreu mais de vinte países perguntando às pessoas o seguinte: em que momento você se sente mais atraído pela sua companheira/por seu companheiro? Houve dois tipos de respostas recorrentes. O primeiro tipo implicava distância: quando ela está viajando, quando estamos separados, quando nos reencontramos. “Basicamente”, comenta Perel, “quando reencontro minha capacidade de me imaginar com minha companheira, quando minha imaginação volta à cena, quando consigo me fixar na saudade e na ausência, que são componentes importantes do desejo.”
3.
Perel acha o segundo grupo de resposta recorrentes ainda mais interessante. Me sinto mais atraída pela minha companheira, dizem essas pessoas, quando ela está no trabalho, quando está no palco, quando está em seu elemento, quando está fazendo algo pela qual é apaixonada, quando a vejo em festas e as pessoas em volta estão interessadas nela. Quando a pessoa, em resumo, está radiante e exalando auto-confiança.
“É quando estou olhando para minha companheira de uma distância confortável”, continua Perel, “e essa pessoa, que é tão familiar, tão conhecida, se torna momentaneamente algo misterioso de novo. Porque às vezes, como diz Proust, o mistério não envolve viajar para novos lugares, mas olhar com novos olhos.”
4.
Em um dia de sol, levamos os motoqueiros para uma atração local escondida atrás de um cemitério. Acaba que, para T., o cemitério também é atração; tira fotos de lápides de crianças mortas no século 19 nesse fim de mundo onde seus pais chegaram depois de atravessar o país buscando prosperidade. Depois das lápides, surge um bosque silencioso, em cujo centro há um “buraco” de vinte e cinco metros de profundidade que se conecta com o mar. As ondas vão e vêm. Andamos mais tarde até a ponta da falésia cuidando para não encostarmos em trepadeiras venenosas que já estão ficando avermelhadas e que logo vão desaparecer. Respiramos fundo olhando para o mar e para pequenas ilhas pontudas onde só as gaivotas e os pelicanos chegam. Y. comenta que, se morasse em Mendocino, ia instalar uma cadeira dobrável exatamente naquele lugar e passaria o dia ali. O comentário me causa certo desconforto porque me faz pensar que não faço isso há muito tempo. Entre uma viagem ou outra – todas necessárias em algum sentido –, tenho trabalhado em dois projetos grandes e me sinto constantemente batalhando com a culpa de não estar conseguindo cumprir os prazos estabelecidos. Isso quer dizer que não estou me permitido muito esses momentos contemplativos, embora eu tenha plena certeza de que preciso deles para escrever. E decido ali, a um passo do abismo: depois de entregar os tais dois projetos, vou parar com tudo, vou negar tudo. O livro novo precisa de espaço para crescer.
5.
Estou no Colorado agora. Crested Butte, nas Montonhas Rochosas. A casa dos amigos dá para um vale de nuvens impecáveis e imprevisíveis. Trabalho algumas horas numa mesa no quarto, corroída pela culpa de não estar aproveitando o lugar e, quando estou no modo passeio, tenho lampejos ainda maiores de culpa por causa dos dois trabalhos atrasados. E há o curso de romance, os clubes de leitura, essa Nevoeiro. Muitas distâncias foram necessárias nos últimos tempos. Distâncias que refratam e reconfiguram as coisas. Em um fim de tarde, pego uma trilha perto da casa e começo a subir a montanha que normalmente é acessível pela fila suspensa de cadeirinhas de esqui. Acho curioso ver os vestígios da alta temporada. A subida exige algum esforço, estou a três mil metros de altitude. Passo ocasionalmente por grupos de álamos, os famosos aspens, Populus tremuloides. O vasto-projeto-atrasado-de-tradução me ensinou que bosques de álamos são na verdade um único organismo. Cópias sem fim do mesmo indíviduo. Vejam que o projeto está sempre comigo. Os tronco dos álamos tem cicatrizes de galhos caídos que parecem olhos, não lembro se eu sabia disso. Chego no topo da montanha ainda sob um resíduo de efeitos canábicos. Em volta, o maquinário da estação de esqui em suspenso me atiça a curiosidade que os lugares abandonados sempre me atiçam. Sento numa estruturinha esquisita de madeira com uma cruz no centro e um cartaz que diz: Missa Domingo 13h – topo da montanha Painter Boy. Por algum tempo, fico anotando coisas sobre o projeto novo. Só a distância dirá.
* Na próxima quinta, dia 21, vou enviar como edição exclusiva aos pagantes o capítulo não publicado do O Clube dos Jardineiros de Fumaça. É um capítulo sobre o Allen Ginsberg e foi uma das primeiras coisas que escrevi do livro, mas acabou ficando de fora por motivos que vou explicar na edição.
* Se você ainda não colabora com a Nevoeiro, considere colaborar. Além do Clube Nevoeiro, estou sempre tentando inventar mimos para os assinantes. E isso aqui dá trabalho, acredite.
* O TED Talk da Esther Perel pode ser visto aqui. E aqui está a referida coluna da Martha Batalha.
* Nosso próximo encontro do Clube Nevoeiro é dia 5 de outubro, às 19h, sobre Ioga, de Emmanuel Carrère. Em 7 de novembro, debateremos Filhos de Jesus, de Denis Johnson e, em dezembro, o vencedor entre esses quatros romances brasileiros: Pandora (Ana Paula Pacheco), Vale o que tá escrito (Dan), Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (Elvira Vigna) e Uma tristeza infinita (Antonio Xerxenesky).
Queria morar dentro dos seus textos, Carol. Mó paz
Carol querida. Obrigada pelo texto.
Precisei ler a parte dos motoqueiros em voz alta para meu marido, pois traduziu o que eu sentia quando chegavam pessoas para me visitar. A minha percepção da cidade mudava e me fazia enxergar aspectos esquecidos da minha escolha.
Da mesma maneira isso acontece quando recebo amigos e família em Porto Alegre, a nova cidade escolhida. Me traz um encantamento que o dia a dia não me permite ver.