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1.
Verão em Mendocino, Califórnia, paralelo 39. Um dia quente é um dia em que a temperatura máxima chega a dezoito graus. Ninguém resumiu o microclima dessa parte da costa melhor que Mark Twain: “O inverno mais frio da minha vida foi um verão em San Francisco”. É durante o verão que vemos com mais frequência aquela neblina encorpada, uma massa branca gélida soprada do Pacífico sobre a cidade de mil habitantes. Como uma nuvem enorme e muito baixa. Antes de sair de casa, a um quilômetro e meio do mar, consulto a webcam instalada na fachada de um hotel do século dezenove, que já sediou uma conferência de Caça-Fantasmas e é frequentemente referido como “o hotel mais assombrado da Califórnia”. Se a neblina ainda não engolfou a cidade, desço a montanha.
Parte do que me atrai aqui é a natureza. A outra parte é o anedotário. No fim de semana, eu e a Melissa passamos uma hora e meia imersas numa banheira de hidromassagem comunitária com gente nua. A banheira foi feita de sequoia-vermelha, como tudo o que nos cerca. Dois caras, obviamente nus, conversam sobre pegar caranguejo no fundo do Big River: “Você pega com a mão?” “Eles são lentos.” Na mesma banheira, uns meses atrás, uma mulher falava sobre aparições de ursos e pumas. Quando paro para pensar nisso, na small talk de Mendocino e no anedotário todo, entendo que me mudar para cá foi minha maneira de dar algum gosto de aventura à rotina. Como eu disse na edição passada, todos nós precisamos da ideia de casa e da ideia de aventura, em graus variados. Hoje faz exatamente cinco anos que cheguei aqui.
2.
No domingo, dirigimos cinquenta minutos até Boonville, no vale, onde está dez graus mais quente. Corremos, almoçamos e paramos perto do rio Navarro, estranhamente sem famílias, sem boias de flamingo, sem cachorros. “Algas tóxicas”, diz o cartaz pregado na árvore. Chego perto do leito magrinho e vejo o fundo coberto de gosma verde. Instalo minha cadeira na margem pedregosa. Eles não dizem o que a superpopulação de cianobactérias pode fazer com o seu organismo, mas eu não pretendo descobrir. Estou nas últimas páginas de um romance chamado Last summer in the city (L’ultima estate in città, no original), de Gianfranco Calligarich, que comprei aceitando a aleatoriedade das escolhas literárias: a capa chama a atenção e você descobre, ao manipular o livro, uns dois ou três motivos para levá-lo. É bonito quando dá certo. Uma espécie de mágica. Você entrou em uma livraria com milhares de títulos e descobriu uma joia. Foi o caso com o livro de Calligarich, publicado originalmente em 1970. Os motivos que me levaram a comprá-lo: a imagem de um cinzeiro, um prefácio de André Aciman, o fato do livro ter sido rejeitado por um sem número de editoras italianas e então publicado graças à interferência apaixonada de ninguém menos que Natalia Ginzburg.
3.
André Aciman é o cara que escreveu Me chame pelo seu nome, adaptado para o cinema em 2017. No prefácio do livro que estou lendo à beira do rio tóxico de verão, Aciman compara o romance de Calligarich aos filmes A doce vida e A grande beleza. Todas as três narrativas se passam em Roma e focalizam pessoas socialmente privilegiadas acometidas por um enorme vazio existencial. Roma é sua salvação e seu abismo. “Como Calligarich faz Arianna dizer” escreve Aciman no prefácio, “ninguém é de Roma. Todos vêm de algum outro lugar. Roma é o lar dos que estão de passagem, dos que não pertencem a nenhum lugar, que são incompletos, que tem um ‘eu’ mas desejam outro, e que não podem, por mais que tentem, renegar o ‘eu’ que herderam.”
4.
Os personagens, portanto, escolheram Roma. Milão é o lugar de origem do protagonista, algo acinzentado que ele associa com trabalho e percursos de vida convencionais. Roma é sua chance de escrever um romance. Roma é o hedonismo colorido que vibra nas cenas de A doce vida e A grande beleza. A escolha por Roma é da ordem do desejo, do inexplicável, do carpe diem. Algo oposto a: “recebi uma proposta de emprego, vou me mudar para _______”. Por mais toscas que pareçam essas oposições categóricas, preciso confessar que tenho um fraco por elas. De maneira que ali, na beira da água inchada pelas toxinas de umas das primeiras formas de vida do planeta, decido expandir a oposição para outras geografias. A cidade do trabalho e a cidade do desejo. Só pela brincadeira. Madri e Barcelona. São Paulo e Rio de Janeiro. Toronto e Montreal. Cairo e Alexandria. Será que são os meus olhos, ou eu estou vendo o mar?
5.
Roma não está no litoral, mas a promessa do horizonte azulado não fica muito distante, a trinta minutos da cidade. E o mar surge mesmo como uma promessa, um conforto, um alento desde as primeiras páginas de Last summer in the city. Não é sempre assim, para todos nós? Sentidos universais do mar. Onde tudo começa e onde tudo termina. No início do romance, há uma cena muito bonita em que o avô do protagonista, a ponto de morrer, pede ao filho um pouco de água salgada. Tinha passado a juventude trabalhando em navios mercantes no Mediterrâneo antes de ir parar na “sombria” Milão. O filho e o neto dirigem até Gênova, enchem uma garrafa com a água do mar e voltam com pressa, mas, quando chegam, o velho marinheiro já foi tragado pela inconsciência.
6.
É sempre muito tentador acreditar que nada é aleatório, que pegar esse livro e gostar muito dele não fala de sorte ou da lei das probabilidades, mas do famoso “era para ser”, uma frase que sempre me causa arrepios quando pronunciada perto de mim, como se as pessoas que a exprimessem estivessem sempre tirando a sua responsabilidade e o seu livre-arbítrio da equação, oferecendo de bandeja o destino para as forças do imponderável.
7.
Do imponderável: André Aciman nasceu em 1951 em Alexandria, Egito, à beira do Mediterrâneo. Minha mãe nasceu em 1953, em Alexandria, Egito, a alguns quarteirões do mar. Ambos cresceram em uma família de judeus sefarditas que falava francês em casa. A família Aciman foi poupada da grande expulsão dos judeus promovida pelo presidente Nasser em 1956-1957, tendo que trocar o Egito pelos Estados Unidos somente na metade dos anos sessenta. A família Bensimon deixou Alexandria na grande expulsão dos judeus promovida pelo presidente Nasser, em 1957, atracando no sul do Brasil com algumas malas e umas panelas de alumínio. Meu avô nunca pediu uma garrafa cheia de água do mar, mas cantarolava canções da Dalida pela casa, e desde criança eu sabia que aquilo tinha algo de triste, era uma janelinha para uma vida abandonada. As memórias acabaram morrendo antes dele – ele teve Alzheimer –, e antes que eu pudesse verdadeiramente me interessar por elas, perguntar, descobrir quem era de fato o meu avô.
8.
Em seu romance, Calligarich cita alguns versos de Konstantínos Kaváfis, o grande poeta grego de Alexandria (nasceu na Alexandria do Império Otomano em 1863 e morreu na Alexandria do Reino do Egito em 1933). É impossível falar da versão cosmopolita dessa cidade mediterrânea sem falar de Kaváfis. Ele vagueia como um fantasma nos volumes de O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell. Ele está na epígrafe de praticamente todas as teses de doutorado e todos os livros de memórias que giram em torno da grande expulsão dos judeus do Egito em 1956-1957. E antes deles os italianos. E antes deles os gregos.
não há nenhum barco à sua espera, nenhuma estrada para fora da cidade.
Assim como você desperdiçou sua vida aqui, neste canto esquecido
desperdiçou-a no mundo todo.
9.
Não acho que meu avô fosse uma pessoa que precisava de muita aventura. Foi forçado à aventura, isso sim, cruzar o Atlântico deixando quase tudo o que tinha no norte da África. Pensando bem, uma aventura compulsória não é exatamente uma aventura. E talvez faça você ter asco de aventura. A ideia de casa cresce. Você só quer um lugar onde pode se sentir seguro. Mais trabalho e menos desejo. Mais Milão e menos Roma. Mais dinheiro, gavetas abarrotadas de coisas, admiração por prédios de vidro espelhado, ideias de progresso. Menos mar, menos ruínas, menos paixão. Menos memória. Em duas gerações, tudo vira do avesso.
A tradução dos versos do Kaváfis é do Pedro Gonzaga. Dá para ler o poema completo aqui.
Seguem aqui nossas próximas leituras do Clube Nevoeiro. O livro de dezembro será definido através de uma enquete entre os colaboradores. E o clube segue no ano que vem, claro.
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
Carol, essa edição tá um perigo: a balança do desejo e do trabalho provoca reflexões fortíssimas!
Esse nevoeiro recobre a mesmice. Assim dá para ver melhor o que estava escondido. Continue, continue!