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1.
O trecho em que o rio alarga de repente, inchando como um olho, é verde esmeralda visto de cima. Abetos de Douglas e jovens sequoias-vermelhas sobem pelas margens rochosas, espremidos em uma massa verde temperada onde não é possível saber onde uma árvore acaba e outra começa. Há algo de irreal nessa paisagem – porque não cresci nela, porque ela chegou a mim primeiro por livros e filmes, e isso a cobre com um verniz de ficção. Ao mesmo tempo, o estranhamento aguça minha consciência: estou aqui. Começo a descer a trilha íngreme que leva ao rio, sentindo uma leve dor no joelho direito. Não fiz os treinos de reforço muscular na semana que passou, só a corrida, e agora aquilo bate como uma catástrofe irreversível, tenho quarenta anos, o corpo exige uma constante manutenção, não posso vacilar, me entregar à preguiça, o preço vem depois e é estupidamente alto. Chego na beira da água. Vou ficar ali o dia todo, entrando e saindo do olho esmeralda com meu chapéu de caubói – apropriação cultural –, há famílias em volta, boias de unicórnio, cachorros que gostam de água e outros que odeiam, um cara com uma tatuagem no peito tão desbotada (taken) que parece gritar isso foi um grande erro da minha juventude.
Um menininho aparece na margem tentando contar uma coisa para os pais: “Toquei numa borboleta-monarca duas vezes!”. Eles não dão muita bola. “Não é demais?” Ele olha para mim. “Toquei numa borboleta-monarca! Ela quase pousou em mim. Isso é o tipo de coisa que acontece só uma vez na vida”. Eu rio. Ele repete mais algumas vezes ao longo dos próximos cinco minutos “é o tipo de coisa que só acontece uma vez na vida”. Fico pensando de onde ele tirou isso, se já tem mesmo noção dos sedimentos do tempo.
Até quando vai se lembrar da borboleta?
2.
Eu me considero uma pessoa de memória ruim. Foi por isso que recentemente engavetei uma ideia de livro de não-ficção: parecia impossível dar vida de novo às cenas que eu precisaria contar. Como saber o que tal pessoa disse naquela ocasião? Como recriar velhos sentimentos e velhas sensações? Há ensaístas que fazem isso. Vivian Gornick descreve jantares que se passaram muitos anos atrás, empilhando descrições e comentários mordazes sobre pessoas que conheceu. Me pergunto se eu e ela temos uma capacidade de memória diferente – um espaço de estoque mais reduzido no meu cérebro –, ou se o que nos separa é uma diferença de compreensão do pacto narrativo. O que quero dizer com isso é que eu jamais encararia a tarefa de relatar o que de fato aconteceu; pra mim, as lacunas que eu seria obrigada a preencher com imaginação já colocariam o livro no terreno da narrativa ficcional. Com 1% de especulação, eu chamaria de romance.
3.
Ainda assim, agraciada com essa memória de bem-te-vi, sinto as camadas de tempo pressionando minha consciência. Na beira do rio, tento me concentrar no presente, focar apenas nas sensações físicas. Mas, como escreveu Annie Dillard, no momento em que você fica consciente do instante, ele já lhe escapa: “É isso, eu penso, é isso, o agora, o presente, esse posto de gasolina deserto, esse vento do oeste, esse gosto de café na língua, estou acariciando esse cãozinho, estou vendo a montanha. E, no segundo em que verbalizo essa percepção em meu cérebro, paro de ver a montanha, paro de sentir o cãozinho.”
4.
A cena é imortalizada em uma foto de celular, memória instantânea perdida num acúmulo de instantes. Fico pensando se, daqui pra frente, vou sempre carregar comigo uma consciência mais nítida do fim. Comprei um aparelho de pressão. Faço duas medições diárias e anoto os números num caderninho.
5.
Annie Dillard é autora de Pilgrim at Tinker Creek, livro inédito no Brasil que ganhou o Pulitzer de não-ficção em 1975. Já tentei convencer editores a publicarem o livro (e me chamarem para traduzir, obviamente), mas não tive nenhum sucesso com isso. Entendo que o apelo comercial é restrito, afinal, é um livro sobre uma mulher observando um córrego. Mas claro que é mais do que um exercício descritivo, o córrego carrega o mundo, além de uma camada de espiritualidade que não incomodou em nada essa ateia aqui, muito pelo contrário, foi o mais perto que já cheguei de entender a crença em Deus.
6.
Pilgrim at Tinker Creek é um ensaio um tanto desorganizado, no bom sentido, em termos de acúmulo de reflexões e opacidade do que diz. Um ensaio quase em fluxo de consciência. Um Walden do século vinte, muito mais palatável e sensível do que o livro de Thoreau. Em um capítulo intitulado “The present”, Dillard reflete sobre a capacidade de observação das crianças, algo que se perde nos adultos quando, segundo ela, tomamos consciência da ideia da morte. Como o menininho da beira do rio deslumbrado com a borboleta, as crianças evocadas por Dillard são puro receptores sensoriais. Um colecionador de pontas de flechas conta a ela que o único jeito de achar tais relíquias é sair para caminhar com uma criança. E a própria Dillard tem uma experiência semelhante quando, após anos desejando ver os curiosos casulos dos insetos da ordem Trichoptera, é a filha de uma amiga que acaba lhe apontando aquela coisa estranha na água: “o que é isso?”. A autora diz que gostaria de ter respondido: “é o memento mori para pessoas que leem demais”.
7.
É nesse ponto que discordo de Dillard. Ler e observar o mundo não são coisas diametralmente opostas, mas complementares. Um bom livro apura sua capacidade de ver: ver na página, depois ver na vida. O bom livro é como o córrego que Dillard descreve, cheio de preciosidades discretas esperando ser reveladas.
8.
Um desses prêmios preciosos, a versão em palavras de um casulo de Trichoptera, vem ao fim do capítulo já citado, e eu o vejo como uma espécie de apaziguamento com a ideia do presente puro. Não existe presente puro, e está tudo bem. “Meu Deus”, escreve Dillard, “eu olho para o córrego. É a resposta para a oração de Merton, ‘Dai-nos tempo!’ Ele nunca para. Se eu vou em busca dos sentidos e da habilidade das crianças, da informação de mil livros, da inocência dos cãezinhos, até mesmo da minha experiência passada na cidade, faço isso apenas, única e exclusivamente, para olhar melhor o córrego.”
É isso. Para olhar melhor o córrego.
* Segue aqui nosso calendário de leituras do Clube Nevoeiro. O livro de dezembro será definido através de uma enquete. Todos os colaboradores poderão votar.
5/7 – Alvo Noturno, de Ricardo Piglia
8/8 – Notas de um filho nativo, de James Baldwin
5/9 – A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda
5/10 – Ioga, de Emmanuel Carrère
7/11 – Filho de Jesus, de Denis Johnson
* Li dois livros brasileiros ótimos nos últimos meses, e inclusive devo colocá-los na enquete do clube: Pandora, da Ana Paula Pacheco, é um delírio pandêmico maravilhoso, claustrofóbico e bem-humorado. Vale o que tá escrito, do Dan, é puro suco de Brasil violento, uma estreia de respeito que tem como pano de fundo o pouco representado Centro-Oeste.
* Se vocês ainda não conhecem o Círculo de Poemas, espiem o site. O Círculo funciona pelo modelo de clube de assinaturas, e publica novas vozes da poesia brasileira e estrangeira, clássicos modernos inéditos e obras reunidas de grandes poetas. No mês de julho, a caixinha vai trazer um livro da argentina Laura Wittner e uma plaquete exclusiva da Ana Martins Marques. E logo mais vêm a primeira edição brasileira do clássico de William Carlos Williams, Paterson, a poesia reunida de Donizete Galvão, um livro de Georges Perec e plaquetes inéditas de Bruna Beber e Vini Calderoni. Com o cupom NEVOEIRO15, rola um desconto de 15% nas assinaturas semestrais e anuais.
Ah, que delícia passear contigo, no pensamento e na trilha.
Como sempre, um texto lindo! E viva o Circulo de Poema :)