Oi, gente, tudo bem? Tive uma newsletter intermitente por algum tempo, que começou como uma cartinha para amigos próximos em ocasião da minha mudança para a Califórnia, e a lista foi de repente crescendo e ultrapassou mil pessoas, muitas das quais estão recebendo essa aqui, minha nova newsletter, a Nevoeiro. Obviamente não sei bem com quem estou falando – o que querem? o quanto sabem de mim? –, mas pretendo continuar com o mesmo estilo amigável, observando o que está na minha volta, remoendo alguma ideia, dando dicas de livros e discos, etc.
A Nevoeiro chegará no seu e-mail duas vezes por mês.
1.
Moro no extremo oeste do mundo com minha esposa (bodas de madeira!), na terra das sequoias vermelhas, a uma distância caminhável de uma cidade de mil habitantes chamada Mendocino. Mato e mar. Se eu abrir a porta de casa agora, vou ouvir a floresta pingando. Há algo de esquisito em estar em um lugar sobre o qual meus amigos brasileiros tem pouca ou nenhuma referência. Eu me sinto muitas vezes sozinha, como se estivesse vivendo experiências ou intraduzíveis, ou que simplesmente não vão interessar a ninguém, um sentimento que, em algum grau, deve atravessar todos os expatriados. Nas redes sociais, me policio um pouco para não compartilhar as peculiaridades dessa existência cotidiana na Califórnia rural, num misto de senso do ridículo (meu lado millennial-anciã não aceita essa lógica da hiperexposição atual) e de medo de ostentar. Ou de parecer que estou ostentando. Ainda que eu entenda que viver numa cabana perto de um mar gelado não seja o sonho de todos.
Mas então digo isso, sobre minha solidão e minha desconexão com os que me são mais caros, e quero colocar aqui um mapa de onde eu vivo. Meu amigo D. acaba de se mudar para a Itália. Postou um stories com seu novo endereço outro dia. É isso. Acho que precisamos dizer: eu estou aqui.
Eu estou aqui.
2.
Tudo o que acabo de falar tem desdobramentos literários, é claro. A questão na verdade se enreda mais: como viver anos tendo uma experiência de vida tão diferente da experiência das minhas leitoras e leitores? O medo de ser incompreendida, de não conseguir tocar as pessoas por causa dessa distância, é imenso. Esse sentimento normalmente oscila com a constatação de que é tudo bobagem; nenhuma pessoa tem uma experiência de vida igual à da outra, por mais que vivam no mesmo lugar, possuam a mesma condição socioeconômica, etc, etc, e portanto meu temor é infundado, cada existência é única e, ao mesmo tempo, o que nos toca é universal, todos carregam traumas de infâncias, todos sentem amor e rejeição, todos tem medo de morrer.
Mas a dúvida sempre volta: e o próximo livro? Onde vai se passar? Quem é minha leitora sabe o quanto os lugares importam e como é impensável para mim criar algo ambientado em um lugar que não conheço.
E esse Pacífico! E esse cervo! O que faço com eles?
Ultimamente tenho aceitado que minhas histórias vão ser sempre histórias de deslocamento, de entre-lugares, que colocam em cena dois movimentos opostos: fugir e ser puxada de volta. Já tenho livros o suficiente para conhecer bem minhas obsessões.
3.
Minha amiga Mari Müller ouviu o Kleber Mendonça Filho dizer a uma turma de estudantes: “qual é a obsessão de vocês? É daí que saem os filmes.” A Mari contou isso na newsletter dela e comentou sobre as obsessões presentes no Diorama, depois veio me perguntar no privado por que eu tinha ficado obcecada por taxidermia.
E de novo vou voltar a Mendocino para dizer que a cidade tem só dois bares, um com uma cabeça de alce pendurada na parede, outra com uma cabeça de cervo. Sempre achei aquilo fascinante e perturbador. Como disse uma autora que eu li: você nunca fica indiferente diante de um animal empalhado. Tem algo rolando ali, uma fusão bizarra entre vida e morte. Dioramas – as vitrines com os animais taxidermizados e a simulação do seu habitat – são ainda mais impressionantes. Especialmente quando você pensa que aqueles habitats foram dizimados.
Em 2019, estive no Museu de História Natural de Nova York, considerado a Capela Sistina da taxidermia. E aí comecei a pensar naquilo de um modo mais amplo, indo então estudar os primórdios da história natural, os primeiros naturalistas, etc. O que me interessava ali era a obsessão humana por coletar, categorizar, guardar. Ou, como escrevi no primeiro parágrafo do livro: “Gorilas morreriam na África para serem remontados e exibidos em Nova York.”
Queria usar os animais empalhados na ficção de um jeito diferente do que eles costumam ser usados – em geral eles funcionam como uma espécie de marcador de psicopatia, enfeitando as casas de serial killers, sinalizando o perigo em uma cabana remota. A taxidermia para mim era uma maneira de falar da relação ambígua que temos com a natureza, uma relação de extermínio e arrebatamento.
4.
Pela newsletter do Antônio Xerxenesky, cheguei nessa longa entrevista com o Daniel Pellizzari que, além de falar sobre sua obsessão pelo século IV, declara que não gosta de trama – tanto nos livros que lê quanto nos que escreve – porque trama é “coisa de fofoqueiro”. Ri intensamente. Gostei muito da definição, mas o fato é que tenho gostado também, e cada vez mais, de trama. Primeiro, a trama ordena o mundo, o que responde à nossa ideia de controle, mas acho melhor não entrar nesse assunto agora. Segundo, quando os temas e obsessões da autora ficam cada vez mais claros à medida que ela publica mais romances, o que sobra para diferenciar um livro do outro? O que evita a sensação de “ai meu deus, eu estou me repetindo”? A trama, por supuesto.
5.
Adoro quando as leitoras e leitores me dizem que um livro meu as/os apresentou tal banda. Escuto muito isso. Fico daí me achando a Sofia Coppola da literatura, ou ao menos o que a Sofia Coppola muitas vezes foi para mim, alguém que me trouxe Jesus & Mary Chain, Dustin O’Halloran e principalmente Radio Dept. É um efeito colateral nada desprezível. Agora tenho mais esse espaço para falar de música. Às vezes serão playlists, outras vezes, recomendações de álbuns. Sim, álbuns, essa coisa Mezosoica. Começo com dois. O primeiro é do The Cure, e obviamente não preciso apresentar The Cure para ninguém, mas é possível que você nunca tenha parado para ouvir esse disco de cabo a rabo: Disintegration, de 1989. Ouvi demais enquanto escrevia meu último livro. Vinícius Matzenbacher saiu inteiro da faixa Fascination Street. Não, não tomei cogumelos, a sinestesia simplesmente acontece.
6.
O outro álbum é de um projeto chamado Orchid Mantis. Agora temos “projetos”, não “bandas”; acontecem dentro de um quarto e são gravados por uma única pessoa. Orchid Mantis é uma cruza de dream pop com música ambiente. O que eu gosto nele é que as canções me carregam para uma nuvem de euforia discreta, mas me deixam espaço para pensar na vida e nas minhas histórias. Esse é o disco mais recente, Visitations. Fico toda coração mole na faixa Seven thousand miles.
Olá, Carol! Que bom que você está aqui no Substack! Já assinei! Conheci esse lugar lendo a newsletter pública da Patti Smith. Desde então virou meu lugarzinho preferido. O primeiro livro que eu li seu foi Pó de Parede e depois foi Todos Nós Adorávamos Caubóis. Estou relendo o Clube dos Jardineiros de Fumaça (faz tempo que li pela primeira vez 🤭) e agora estou muito interessado em Diorama. Logo logo vou ler e já quero comentar sobre! É isso: esse comentário foi só para dizer que sou seu fã 😂 e gosto muito dos seus livros. Parabéns.
Olá Carol, que boa essa retomada da newsletter. Ainda não li o Diorama, mas vou fazer isso logo. Me fez lembrar o conto do Gustavo Pacheco, em Alguns Humanos, "História Natural", no qual um dos temas são os dioramas. Abração!